
A Igreja da Misericórdia, localizada na Rua Duque de Caxias, no Centro, é uma das construções mais antigas de João Pessoa, com fachada do século XVI. Hoje, a rua faz parte do centro comercial da cidade e a igreja divide o cenário com o vai e vem de gente, além de bancas com mercadorias de vendedores ambulantes.
A construção da Igreja da Misericórdia teve início entre o final do século XVI e o início do século XVII, quando a então chamada Filipéia de Nossa Senhora das Neves ainda dava seus primeiros passos. O local integrava um complexo arquitetônico composto também pela Santa Casa da Misericórdia, o primeiro hospital da capital paraibana, além de um cemitério e a histórica roda dos expostos, mecanismo destinado ao acolhimento de crianças abandonadas.

Além da fachada, há vários elementos na Igreja da Misericórdia que contam a história do importante ponto turístico de João Pessoa. Na parte superior, onde ficam os sinos, área restrita, há máquinas de escrever, equipamentos antigos, um quadro com a "Oração do Médico", além de uma placa com a palavra “Pharmacia” e frascos de remédios com etiquetas escritas com uma caligrafia que remete a tempos antigos. Tudo isso são vestígios do antigo Hospital da Misericórdia, que prestou assistência social na Filipéia de Nossa Senhora das Neves por muito tempo.
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De acordo com o professor de história da UFPB, Ângelo Emílio, as casas de misericórdia eram instituições essenciais no período moderno português. Com o objetivo de fornecer assistência social, a irmandade começou em Lisboa no século XV e se espalhou pelo império.

“Elas funcionavam como uma mistura de Estado e Igreja. Prestavam assistência social em uma época sem políticas públicas como conhecemos hoje”, explica. A primeira foi fundada em Lisboa no século XV, e com a expansão do Império Português, a iniciativa se espalhou por diversos continentes, chegando também à antiga Paraíba”.
A obra foi financiada por pessoas abastadas da época. Um dos principais financiadores foi Duarte da Silveira, que hoje está sepultado com a esposa, Fulgência Tavares, na Capela do Salvador do Mundo, dentro da Igreja da Misericórdia. As doações permaneceram como a principal forma de subsistência das Santas Casas de Misericórdia, como explica o professor Ângelo Emílio.

“Então, você tinha pessoas ricas, abastadas, que eram irmãos da Santa Casa e eles faziam donativos, né, tinha uma finalidade caritativa e a instituição, além da sua prática religiosa, tinha essa prática de assistência”.
Santa Casa: religião e assistência social

Não há informações sobre a data exata em que a construção da Igreja da Misericórdia e da Santa Casa de Misericórdia começou. No entanto, em pesquisas sobre o local, como no artigo da autora Maria Berthilde Moura Filha, há referências a registros de 1595 fazendo referência a uma “Rua da Misericórdia”, o que demonstra que pelo menos havia o começo de uma obra. Há também documentos de 1618 falando sobre a construção finalizada.
O professor Ângelo Emílio aponta que a pedra fundamental da igreja foi lançada em 1602. “Quando a cidade começa a ganhar a maior expressão, ali do fim do século XVI para o início do século XVII, lança-se a pedra fundamental da Misericórdia daqui, em torno de 1602. Obviamente que para a construção do templo vai demorar muitos anos, né? Exige-se um grande investimento”.
Numa época em que não existia um Sistema Único de Saúde e outras políticas sociais, na Paraíba, o Hospital da Misericórdia se tornou uma referência em atendimento médico, enterramento de mortos e acolhimento de crianças abandonadas, colocadas na roda dos expostos. Atualmente, a roda dos expostos ou dos enjeitados não existe mais, mas é possível ver o local onde o mecanismo ficava.

O professor Ângelo Antônio conta que era possível deixar crianças na roda de forma anônima. “A pessoa colocava ali no anonimato, girava aquela roda, ia pela rua, imagine-se tardes horas da noite, né, discretamente, colocava. Quando girava, acionava um sininho e as pessoas dentro da Misericórdia sabiam que havia uma criança ali”.

O hospital enfrentou crises sanitárias, como o surto de cólera na Paraíba, no século XVIII, que matou mais de 1500 pessoas em poucos dias. Ainda serviu de espaço para atender “alienados”, como eram chamadas as pessoas com questões psicológicas na época. Conforme aponta a obra “A administração da Loucura: a Santa Casa da Parahyba do Norte no tratamento dos alienados”, da pesquisadora Gerlane Farias, essa função do hospital durou até o ano de 1892 quando foi fundado o Asilo Sant'Ana, no sítio da Cruz do Peixe, também administrado pela irmandade.
Em 1850, foi construído um novo cemitério, afastado da cidade, culminando na desativação do cemitério que ficava no complexo da Igreja da Misericórdia. Já o hospital funcionou até o início do século XX, quando foi transferido para o mesmo sítio onde estava localizado o Asilo Sant’Ana. Em 1924, a parte do hospital e cemitério foi demolida. No entanto, atualmente, dentro da igreja ainda há um ossuário.
Igreja da Misericórdia: documento vivo

Tombada Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 1938, a Igreja da Misericórdia enfrenta problemas estruturais e a necessidade de reformas. O local é administrado pela Santa Casa de Misericórdia da Paraíba e depende de doações, como explica Francisco Maia, que trabalha na organização da igreja desde a década de 1980.
“No momento, nós não recebemos verbas do setor público. A igreja hoje sobrevive de suas doações, das pessoas que aqui visitam, dos turistas e tudo mais. Só que a Santa Casa hoje, ela sozinha não tem condições de fazer esses reparos que está a igreja precisando ou necessitando”.

É visível a necessidade de reparos, especialmente nas infiltrações que ficam ainda mais visíveis durante a época chuvosa em João Pessoa. Francisco Maia aproveitou para apelar por ajuda para a preservação do local histórico.
“É por isso que a gente apela para o setor privado ou público, de uma forma geral, que possa nos ajudar para que a gente possa sanar essas necessidades que a Igreja da Misericórdia está enfrentando no momento”.

O professor Ângelo Emílio ressaltou a importância da preservação da Igreja da Misericórdia para a história de João Pessoa, por seu valor arquitetônico-documental. “Ela é uma espécie de documento vivo e uma parte da história da nossa cidade e que precisa e merece preservação e para que as próximas gerações, exatamente, possam ter acesso a essa história e fruir desse espaço tão relevante”.
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