COTIDIANO
Dona Lia encontrou nas mulheres da sua vida uma forma de superar dificuldades
Foi através da cozinha ancestral que Lia encontrou uma forma de resistir
Publicado em 08/03/2021 às 18:50 | Atualizado em 09/03/2021 às 8:39
Maria Auxiliadora Mendes da Silva, a Dona Lia, aprendeu com a mãe e a avó, usar o moinho de pedra e transformar grãos em farinha; milho em cuscuz. No sítio da família, na zona rural de ingá, interior da Paraíba, não tinha muito, mas também se comia a tapioca e o angu, tudo feito manualmente. Foi através da cozinha ancestral que Dona Lia encontrou uma forma de resistir, superar as dificuldades e criar o que hoje é mundialmente conhecido como o Memorial do Cuscuz e Tapioca na Lenha.
Aos 19 anos, Lia abandonou o sítio e se casou. Foi morar em Recife, mas não teve uma vida tão fácil. O marido era agressivo e muitas vezes ela via seus quatro filhos passando fome. Foi nesta falta que ela lembrou do cuscuz que sua mãe e avó faziam: chamava de “cabeça amarrada”.
“Eu lembrei né que podia sobreviver meus filhos com aquilo ali que eu sabia fazer, tinha visto elas fazer. Eu fiz e botava meu filho para vender nas portas das obras em Recife, lá em Ibirebeira”, relembra.
A relação com o marido piorou a ponto dela ter que fugir com os filhos para a maré. “Peguei uma cama botei dento da maré e fui viver com os quatro filhos. Cavei um buraco, botei quatro pau de manga ao redor da cama, amarrei, uma colcha e uma pedaço de colchão (...) muito difícil."
Na mesma época, sua mãe acabou adoecendo em Ingá e Lia decidiu voltar pra cuidar dela e foi assim por 22 anos, quando ficou orfã. Perdeu ambos os pais, o que quase a destruiu por dentro. Foi para o médico, que receitou remédios contra a depressão.
“Me ajoelhei aqui nesse beco e pedi a deus, que ele me desse uma solução pra eu não tomar aqueles medicamentos (...) Já passei por tanta coisa...".
Quando quase caía, decidiu um curso do Sebrae que apareceu e ingá. Ao perguntarem o que ela sabia fazer, Lia lembrou da cozinha ancestral e do moedor de grãos, onde nascia o cuscuz. A solução estava nos saberes das avós e nas relíquias de família. Na sua casa, bem simples, montou seu memorial. "Tudo que tinha aqui era daqueles, que já se foram. Aí eu resgatei", disse.
O angu, o cuscuz cabeça amarrada, a galinha de capoeira e outros pratos regionais ganharam as redes sociais. Dona Lia já recebeu gente de Honduras, dos Estados Unidos e vários outros países. A experiência e emoção resgatadas na casa, através de fotos da família e do aconchego da cozinheira também fazem parte do sucesso.
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O Memorial do Cuscuz e Tapioca na Lenha hoje é conhecido mundialmente e até já fez parte do programa Mestre do Sabor, da Rede Globo. Ela recorda. “O Mestre do Sabor foi muito engraçado. era as pessoas me ligando, e era perguntando e perguntavam da minha vida (...) e eu não acreditava”. Dona Lia primeiramente achou que era um golpe, mas depois perguntou como eles acharam ela. Eles responderam que a acharam por conta da sua história.
Apesar do sucesso, veio a pandemia da Covid-19 e em 28 de março, o restaurante recebeu os últimos clientes, ficando apenas as entregas. O faturamento caiu pela metade e la só conseguiu pagar as contas com a aposentadoria. Ainda teve outro prejuízo que tentou derrubar Lia. Um curto circuito seguido de incêndio destruiu alguns eletrodomésticos e parte das lembranças.Sua relíquia mais importante, uma foto de seu avó e outra de sua mãe e pai, foi levada pelas chamas.
“Essa aí foi a perca maior que eu senti”, explica.
Mas a vida já mostrou pra Lia que a perseverança dela é uma pedra que mói os obstáculos. Lia já é conhecida e o povo sente saudade. O telefone voltou a tocar e a receber mensagens e ela entende que quando se fecha uma porta, se abre uma janela.
Depois de tudo que passou, a cozinheira e empreendedora acredita que tudo é uma experiência. “Vai ser um recomeço”, disse Lia sobre o fogo, que nunca vai apagar sua esperança.
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