COTIDIANO
A esquerda não tem o direito de patrulhar Chico Buarque!
Publicado em 15/08/2017 às 6:23 | Atualizado em 31/08/2021 às 7:44
Com Açúcar, Com Afeto é de 1967. Chico Buarque escreveu no feminino. Na letra, ele dá voz a uma mulher submissa.
Termina assim:
E ao lhe ver assim cansado
Maltrapilho e maltratado
Ainda quis me aborrecer
Qual o quê?
Logo vou esquentar seu prato
Dou um beijo em seu retrato
E abro os meus braços pra você
Camisa Amarela é de 1939. Ary Barroso escreveu no feminino. Na letra, ele dá voz a uma mulher submissa.
Termina assim:
O meu pedaço me fascina
Me domina
Ele é o tal
Por isso não levo a mal
Pegou a camisa
A camisa amarela
Botou fogo nela
Gosto dele assim
Passou a brincadeira
E ele é pra mim
Sempre que ouço uma, lembro da outra. Guardam muitas semelhanças. E são duas joias do cancioneiro popular brasileiro.
Camisa Amarela fala de uma mulher submissa ao marido. O autor não é necessariamente defensor dessa submissão.
Com Açúcar, Com Afeto também fala de uma mulher submissa ao marido. Tal como o Ary de 1939, o Chico de 1967 não está, necessariamente, defendendo essa submissão.
No fim do mês, Chico Buarque vai lançar seu novo disco. O primeiro single está disponível nas plataformas digitais há alguns dias: Tua Cantiga (música de Cristóvão Bastos, letra de Chico). A letra dá voz a um homem casado que ama uma mulher casada.
Tem uma estrofe que diz assim:
Quando teu coração suplicar
Ou quando teu capricho exigir
Largo mulher e filhos
E de joelhos
Vou te seguir
Rapidamente, as redes sociais se encheram de artigos com críticas ao compositor: "machista!", etc. "Chico não me representa mais!" - alguns resumiram assim.
Ora, é esperado que gente de direita fale mal de Chico Buarque. Mas não que gente de esquerda patrulhe o artista, como está ocorrendo.
É o retrato triste e fiel da falta de bom senso que, nos dois extremos, contamina o debate ideológico e político no atual momento brasileiro.
Chico Buarque tem 73 anos, 51 de carreira (se tomarmos como ponto de partida o seu primeiro disco). Lutou contra a ditadura, sempre foi de esquerda, continua sendo. Querem o quê mais dele?
Tua Cantiga é puro Chico. Não o Chico dos clássicos instantâneos da juventude. Mas aquele das canções refinadas dos últimos 20 e tantos anos. É difícil crer que seus versos suscitem o debate que estamos testemunhando.
Seu cancioneiro está entre o melhor que o Brasil produziu, em todos os tempos, quando o assunto é música popular.
As patrulhas ideológicas marcaram o Brasil de 40 anos atrás.
Não é possível que elas estejam de volta!
Salve o compositor popular!
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