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COTIDIANO

Falou e disse: "Boa parte do que o texto significa não se mostra explicitamente"

Publicado em 03/11/2014 às 16:25

O professor Chico Viana associa a variedade de temas própria da crônica com reflexões e comentários sobre a língua portuguesa. Contato com a coluna:[email protected]

Boa parte do que o texto significa não se mostra explicitamente. Quando escrevemos deixamos implícitas algumas informações, e cabe ao leitor completar as lacunas. Os implícitos são basicamente de dois tipos: pressupostos e subentendidos. Os pressupostos estão inscritos na língua; não há como fugir ao sentido que eles determinam. Já os subentendidos dependem de interpretação.

Se alguém diz a uma visita: “Finalmente você apareceu”, pressupõe-se que o interlocutor há tempo não dava as caras; o advérbio que introduz a oração indica isso. Caso ele acrescentasse uma observação do tipo: “Deixou o orgulho de lado”, estaria formulando um subentendido. A ausência do outro teria sido interpretada como soberba. O subentendido sempre envolve um julgamento, um juízo de valor, e por vezes leva à distorção da verdade.

Um exemplo disso ocorre nesta passagem de “O pagador de promessas”, a conhecida peça de Dias Gomes:

PADRE Que pretende com essa gritaria? Desrespeitar esta casa, que é a casa de Deus?

ZÉ Não, Padre, lembrar somente que ainda estou aqui com a minha cruz.

PADRE Estou vendo. E essa insistência na heresia mostra o quanto está afastado da igreja.

Zé do Burro pretende entrar na igrreja carregando uma cruz para agadecer a Santa Bárbara o restabelecimento do seu burro Nicolau. Ele é um homem simples, ingênuo, e jamais lhe passaria pela cabeça contestar a ortodoxia cristã. No entanto o padre Olavo interpreta o fato de ele conduzir a cruz como um sinal de heresia. Subentende na resposta do interiorano a intenção de ser um novo Cristo.

Nos subentendidos refletem-se valores e preconceitos da sociedade. Levei para a classe o seguinte diálogo: “ – Você pretende se casar?” “ – Eu tenho juízo!”.

Depois perguntei à turma o que se subentende da resposta. Praticamente a totalidade dos alunos afirmou que ela dava entender que só “um doido” se casa. O curioso é que o diálogo também permite que se entenda o oposto. Pode-se interpretar a resposta como uma defesa do casamento, que seria a opção do indivíduo prudente e racional. Por que ninguém considerou esse lado?

Nesta outra passagem a interpretação ficou mais fácil, pois o que se subentende parte de um dos envolvidos no diálogo: “– Aquele ali teve sucesso na política.” “ – Já sei. Nunca foi pego.” Está implícita a ideia de que os políticos transgridem a lei.

Um dos maiores riscos na redação é querer dar aos subentendidos o rigor dos pressupostos. O que se interpreta não pode ser tomado como verdade absoluta. Num texto sobre os novos papéis da mulher na sociedade, um aluno escreveu: “O trabalho da mulher fora de casa prejudica a educação dos filhos, pois ninguém substitui a mãe nessa tarefa.”

Subentende-se que tal prejuízo possa ocorrer, mas há mulheres que conseguem conciliar as duas funções. O aluno deveria ao menos ter apresentado o seu julgamento como possibilidade. Por não fazer isso, incidiu numa discutível generalização.

DE OLHO NO ENEM

Uma das dúvidas comuns sobre a redação do Enem é se a proposta de intervenção deve aparecer somente no parágrafo conclusivo.

Não, embora seja recomendável. Numa das redações divulgadas no “Guia do Participante 2013”, a candidata C. L. S. começa a fazer propostas a partir do penúltimo parágrafo (ver a página 34). Ela escreve, por exemplo, que o governo “poderia começar a implantar, nas regiões por onde chegam os imigrantes, mais órgãos e agências que oferecessem serviços de visto e da carteira de trabalho”. A seguir propõe que, nos destinos finais dos imigrantes, lhes sejam oferecidos cursos de português e de qualificação para atuar no mercado de trabalho. Na conclusão, faz uma retomada do que foi dito e acrescenta um tempero retórico, referindo-se à hospitalidade e à criatividade do brasileiro.

O risco de antecipar as propostas é conceder pouco espaço à argumentação, o que pode fragilizar a defesa do ponto de vista. A Banca não considerou que isso aconteceu na redação da candidata, tanto que lhe deu nota 1000.

O FINO DA PROSA

“Hoje, felicidade é ser desejado. Felicidade é ser consumido, é entrar num circuito comercial de sorrisos e festas e virar um objeto de consumo. Hoje, confundimos nosso destino com o destino das coisas...” (Arnaldo Jabor)

PALAVREANDO

Dicionário heterodoxo (2)

Chamego - Tipo de chá que favorece a intimidade entre os membros do casal.

Acomoldado - Diz-se de alguém que, além de passivo, é bitolado.

SUSpiro - Gesto de alívio por encontrar uma vaga no Sistema Único de Saúde.

Bisbilhotar - Bilhotar duas vezes (o problema é saber o que é “bilhotar”).

Tapiôca - Tapioca sem nada dentro.

Originalmente publicado no Jornal da Paraíba, no dia 26 de setembro de 2014.

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Alô Concurseiro

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