COTIDIANO
Falou e disse: A redação do Enem 2014
Publicado em 19/01/2015 às 16:25
O professor Chico Viana associa a variedade de temas própria da crônica com reflexões e comentários sobre a língua portuguesa. Contato com a coluna: [email protected]
Pelo segundo ano consecutivo, o tema de redação do Enem envolveu a relação entre o papel do Estado e as ações de determinados segmentos da sociedade. Em 2013 o foco esteve na Lei Seca, que estabelece limites para o uso de bebida alcoólica por motoristas. Agora está em uma resolução que considera abusiva a publicidade infantil.
O tema até certo ponto surpreendeu mas não foi considerado “difícil”, pois o assunto publicidade figura indiretamente em propostas de redação bastante frequentes em sala de aula. São raros os professores que já não apresentaram a seus alunos temas como consumismo, liberdade de expressão ou economia de mercado, nos quais de alguma forma cabe menção às mensagens publicitárias. Quem redigiu sobre um desses temas já teve oportunidade de confrontar argumentos e se posicionar sobre os perigos da propaganda enganosa ou abusiva.
Essa possível intimidade com o assunto, no entanto, poderia representar uma armadilha e fazer o candidato se fixar no geral, falando da propaganda como um todo; ou se alhear do foco, deixando de lado o público infantil.
Para ajudar a delimitar o tema a banca apresentou três textos motivadores. O primeiro cita a Resolução 186 do Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que considera abusiva toda propaganda dirigida à criança com o propósito de persuadi-la a consumir qualquer produto ou serviço.
O segundo traz um mapa que mostra como diversos países tratam a publicidade para crianças. Há posições extremas, como a dos Estados Unidos, em que não existem leis sobre o assunto (os setores interessados criam normas e fazem acordo com o governo); e a da Austrália, em que não se permite a publicidade voltada para o público infantil.
Já o terceiro texto motivador destaca a necessidade de preparar as crianças para compreender o que está embutido nas mensagens publicitárias a fim de, no futuro, se tornarem consumidores conscientes. Essa meta implica, desde cedo, responsabilidade consigo mesmas e com o mundo.
O tema é bastante polêmico, tanto que no primeiro texto se faz referência a um “cabo de guerra” entre ONGs defensoras dos direitos humanos e setores interessados na continuidade da propaganda dirigida ao público infantil. Não havia para o candidato muitas alternativas além de se alinhar com um ou outro grupo. A questão básica era: ser conta ou a favor da resolução? E por quê?
Em qualquer dos dois casos, ele poderia recolher bons subsídios nos textos motivadores. Se fosse contra, trataria por exemplo de valorizar o argumento de que a autorregulamentação da Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) já é uma boa medida para coibir os abusos. Havendo um órgão específico para tratar desses casos, seria preciso uma resolução? Quais os possíveis efeitos disso? Se fosse a favor poderia levar em conta a imaturidade do público infantil, que o torna vulnerável a mensagens em que aparecem desenhos, histórias e outros recursos usados pela publicidade.
O aproveitamento do segundo texto motivador dependeria de informações sobre os países que figuram no mapa. No entanto era possível, mesmo sem um maior conhecimento, utilizá-los como subsídios para a escolha ou a defesa do ponto de vista. Por exemplo: casos como o da França e do Chile, que recomendam o consumo moderado, poderiam servir de estímulo a um posicionamento intermediário, em que o candidato contestaria determinados pontos da resolução e defenderia outros.
Os favoráveis à Lei poderiam, por fim, se inspirar no terceiro texto para apresentar suas propostas de intervenção social. O desafio de criar o consumidor do futuro impõe à escola, aos pais, ao próprio Estado determinados deveres, que demandam estratégias de atuação. Como operacionalizá-las preservando o direito de escolha das crianças? Indicar meios concretos e exequíveis para isto seria uma boa forma de demonstrar compromisso com a cidadania e solidariedade com as novas gerações.
TIRE SUA DÚVIDA
E-mail de J. Fernandes: “Professor, ‘Eis de Cristo a voz que chama’ pode ser reescrito assim: ‘Eis a voz de Cristo que chama’? Esse processo tem algum nome? Obrigado.”
Pode, sim. Em “de Cristo a voz”, ocorre um tipo de inversão chamado anástrofe. A anástrofe consiste na anteposição de um determinante (de Cristo) a um determinado (a voz). Na ordem direta o termo preposicionado, que determina, fica posposto ao termo principal: “a voz de Cristo”.
Um dos efeitos da anástrofe no verso que você traz é desfazer uma possível ambiguidade quanto à oração adjetiva (que chama). Na ordem direta se poderia pensar que quem chama é Cristo, e não a voz.
MURAL
“O poeta é a criança; o romancista é o adolescente; o ensaísta é a madureza; o crítico é a velhice.” (Paulo Mendes Campos)
Originalmente publicado no Jornal da Paraíba, no dia 18 de janeiro de 2015.
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