COTIDIANO
Juiz é acusado de usar trabalho escravo em fazenda
Marcelo Baldochi aguarda julgamento no Tribunal de Justiça do Estado. Lista do Ministério do Trabalho traz 203 nomes.
Publicado em 16/03/2009 às 8:17
Do G1
De acordo com a fiscalização coordenada pelo Ministério do Trabalho, durante três meses, em 2007, 25 pessoas trabalharam na Fazenda Pôr do Sol, na cidade de Bom Jardim, no interior do Maranhão - sem as mínimas condições de segurança e de higiene. Policiais, promotores e fiscais classificaram o que viram como trabalho escravo. Isso, apesar de o dono da Fazenda Pôr do Sol ser um conhecedor das leis.
"A gente comia um feijãozinho meio-dia. À tarde, arroz branco com molho de pimenta", conta um trabalhador, que não quis se identificar.
Nascido no interior de São Paulo, Marcelo Baldochi passou num concurso público em 2003 e tomou posse como juiz no Maranhão em 2006. É ele o dono da Pôr do Sol. "De 15 em 15 dias, tinha vez dele ir lá na fazenda", conta um trabalhador.
O juiz Baldochi foi incluído na mais recente lista nacional de fazendeiros acusados de usar trabalho escravo. Divulgada pelo Ministério do Trabalho em dezembro passado, a relação traz os nomes de 203 pessoas e empresas.
"Constatado esse trabalho degradante, é dado todo o processo de direito de defesa, quando o nome da pessoa vai para essa lista, chamada lista suja. Ela não consegue mais nenhum recurso de financiamento público", explica Carlos Lupi, ministro do Trabalho.
A lista do Ministério do Trabalho é atualizada de seis em seis meses. Na mais recente delas, a maioria dos fazendeiros é dos estados do Pará, Maranhão, Tocantins e Goiás. "É muito grave você estar em pleno século 21. Você vê alojamentos que nem porco fica", denuncia o ministro.
Visitas
Uma organização não governamental encaminha as denúncias de trabalho escravo da região centro-oeste do estado do Maranhão. "Quase todas as semanas, nós recebemos dez trabalhadores reclamando. Principalmente de carvoarias e fazendas", afirma Milton Teixeira, coordenador da ONG.
Um trabalhador, ferido ao cortar capim com uma foice, diz não ter recebido equipamento de segurança e conta que, pra beber água na fazenda onde estava, na região de Açailândia, tinha que competir com animais. "Tem que pegar antes que o gado sai de lá do curral, que vai pra água. Tem que pegar antes que solta o gado, pra pegar água mais limpa", conta ele.
Foi também o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Açailândia que recebeu as denúncias a respeito da fazenda do juiz Marcelo Baldochi.
"Não tinha nenhuma instalação sanitária no alojamento, inclusive a mesma água que eles bebiam era que eles tomavam banho e usavam pra cozinhar", diz Paula de Ávila e Silva, procuradora do Trabalho.
Entre as pessoas que trabalhavam na fazenda, está um adolescente que, na época, tinha 15 anos. Ele hoje mora na casa da família, onde vivem 19 pessoas sem TV, rádio e energia elétrica. O jovem explica que aceitou trabalhar na fazenda do juiz porque o filho havia acabado de nascer. "Não tinha ganho de nada. Fui me virar. Pobre sofre mesmo, só que lá eu sofri mais", afirma o rapaz.
Ele diz que passou fome e frio durante três meses e que, por pouco, não foi agredido pelo funcionário do juiz que tinha lhe oferecido o serviço e que tomava conta da fazenda. "Queria me bater porque eu disse que eu não ia ficar lá só comendo feijão, arroz com feijão. Nós estávamos trabalhando na diária de R$ 15, mas não pagaram não", conta ele.
A 30 quilômetros de distância, dois homens que dizem ter passado pelo mesmo sofrimento. Eles alegam que o juiz Marcelo Baldochi sabia de tudo. "Teve um dia lá que ele conversou, se chegasse alguma fiscalização era para os trabalhadores dizer pra fiscalização que era posseiro que estava habitando a roça, que não era funcionário dele", revela um dos trabalhadores.
Fiscalização
Logo depois da fiscalização, em 2007, Marcelo Baldochi assinou um termo de ajustamento de conduta, em que se compromete a não maltratar os empregados. Além disso, o juiz pagou cerca de R$ 38 mil de direitos trabalhistas.
Ele nega as acusações de trabalho escravo. "Os pagamentos eram todos feitos quinzenalmente", diz. Baldochi afirma que aceitou pagar a rescisão por ter acreditado "ser melhor acertar essa situação da forma como foi entabulada do que comprar uma briga, que iria causar maiores exposições".
O juiz apresentou cópias de fotos e de documentos que serão usadas em sua defesa, como contratos com trabalhadores. Segundo ele, a água era filtrada e havia sanitários.
Do fórum de Pastos Bons, cidade onde o juiz trabalha atualmente, distante 700 quilômetros da Pôr do Sol, ele afirma que a fazenda é dotada de casa, com dois banheiros, com instalações módicas que acomodam satisfatoriamente. Segundo ele, os trabalhadores comiam arroz, feijão, macarrão, carne, ovos e cuscuz de milho.
"Acredito que se eu não fosse juiz, não teria essa especulação do caso, como em tanto outros casos, não há", critica o juiz.
Sobre o adolescente de 15 anos, Marcelo Baldochi diz que nunca o viu na fazenda. O juiz também alega que não pediu aos trabalhadores que mentissem, em caso de fiscalização. "Conto com a verdade e sempre peço pra que eles digam a verdade", defende-se Baldochi.
Marcelo Baldochi aguarda julgamento no Tribunal de Justiça do Maranhão. "O Ministério Público apurou a existência do crime de trabalho escravo", afirma Fátima Travassos, procuradora-geral de Justiça.
Mais casos
Além do juiz Marcelo Baldochi, a nova lista do Ministério do Trabalho inclui os nomes de outras 33 pessoas acusadas de envolvimento com trabalho escravo no Maranhão.
Antônio Braide é uma delas. Por duas vezes, ele foi prefeito de Santa Luzia, cidade com 70 mil habitantes. A fiscalização ocorreu em outubro de 2007. "Na cidade da gente, não tem outro serviço, não tem serviço. Então, se obriga a vim pra cá", diz um trabalhador.
Os trabalhadores disseram que recebiam cerca de R$ 100 por mês, mas que quase tudo voltava para o bolso do ex-prefeito. "Tudo é vendido, tudo é cobrado", diz o trabalhador
Segundo o Ministério do Trabalho, a Justiça mandou Antônio Braide pagar quase R$ 78 mil para 46 empregados. Por telefone, Antonio Braide disse que não daria entrevista. "Eu não vou falar nada porque isso aí não vai aliviar, nem vai me defender, nem coisa nenhuma. Então, é melhor ficar mesmo calado e pronto", disse o ex-prefeito.
Além do isolamento, da dificuldade de acesso e da pobreza, quem resolve denunciar e combater o trabalho escravo na região enfrenta mais um problema: "mais da metade dos municípios do Maranhão não tem delegado e as delegacias são muito distantes", denuncia Nonnato Masson, advogado da ONG.
Isso quando a delegacia não está destruída, como em Buriticupu. Há um ano, várias pessoas invadiram o prédio, soltaram os presos e atearam fogo nos equipamentos. Até agora, os responsáveis não foram identificados.
Já em Santa Luzia, outro grupo destruiu, no começo deste ano, a Câmara, a Prefeitura e o Fórum. Sessenta e quatro pessoas foram denunciadas pelo Ministério Público à Justiça. "O que existe aí é uma falta de presença do estado mesmo". "São fiscalizados cerca de 40% só das denuncias. Quando consegue registrar a ocorrência, já é uma grande vitória", afirma Nonnato.
Segundo o Ministério do Trabalho, nos últimos quatro anos, pelo menos, 8 mil brasileiros foram libertados de fazendas onde trabalhavam como se fossem escravos. A promessa do ministro é que, nas regiões onde o problema é crônico - como no Maranhão e no Pará - as fiscalizações se tornem cada vez mais rigorosas.
"Quem quer que seja que esteja fazendo isso hoje no Brasil, terá a dureza e o rigor da lei", garante Lupi.
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