COTIDIANO
Sem os velhos, o novo seria uma impossibilidade, me disse Egberto Gismonti
Publicado em 28/08/2016 às 15:25 | Atualizado em 31/08/2021 às 7:46
No post anterior, falei do dia em que deixei de conversar com a única brasileira que gravou com os Beatles para levar minha avó Stella ao camarim de Egberto Gismonti. Agora, conto a segunda parte da história, mais ou menos como registrei no meu livro "Meio Bossa Nova, Meio Rock'n'Roll":
O Pixinguinha 1979 aconteceu no Cine Santo Antônio, em Jaguaribe, adaptado para receber o elenco do projeto. Lizzie Bravo nos conduziu ao camarim, adaptado nos fundos do cinema, por trás da tela. A conversa foi rápida, mas suficiente para que Gismonti ouvisse da minha avó que ali, naquele show, ela tivera a mais intensa experiência musical da sua longa vida.
Egberto pareceu profundamente tocado com o que ouvira, sobretudo porque as palavras - creio - eram pronunciadas por uma pessoa cuja idade (80 anos), em tese, dificultaria a compreensão daquele tipo de trabalho. Eu próprio, que conhecia o gosto musical da minha avó, fiquei surpreso ao vê-la fascinada por Gismonti.
O show de Egberto Gismonti era extraordinário. No velho cinema, a poucos metros de casa, todas as noites, durante uma semana inteira, podíamos ver de perto a melhor música instrumental que se produzia no Brasil. Olívia Byngton e Marlui Miranda também estavam no palco, com vozes expressivas, mas o principal era Gismonti e o trio Academia de Danças.
Egberto produzia sons de um Brasil profundo, no momento em que largara os instrumentos eletrônicos e voltara a uma formação acústica. As improvisações eram jazzísticas. O músico, um virtuose. Por trás da contemporaneidade e do olhar para o futuro, estava o passado. De um lado, Villa-Lobos; do outro, as valsas que o avô escrevia em Carmo, a cidade onde nasceu.
O que encantara minha avó no som tão contemporâneo de Egberto Gismonti?
A demonstração inequívoca de que estávamos diante de um grande músico?
Ou a presença da tradição por trás (ou por dentro) da modernidade do que fazia?
As duas coisas, talvez. Ou uma outra: que, no fundo, não há barreiras para se ouvir música.
O fato é que, naquele encontro por trás da tela do Cine Santo Antônio, nasceu uma relação de amizade viabilizada pela sensibilidade musical.
Quando minha avó morreu, cinco anos mais tarde, guardei as cartas que ela recebeu de Gismonti, bem como o registro, feito pela câmera sensível do fotógrafo paraibano Gustavo Moura, do último encontro dos dois, na casa dela, em setembro de 1983.
Muitos anos depois, ouvi de Egberto que a relação com os velhos mudou a sua vida. Logo ele, que trouxe tanta coisa nova para a música do Brasil. Sim, justamente ele, que sabe que, sem a presença dos velhos, o novo seria uma impossibilidade.
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