VIDA URBANA
156 anos de Campina Grande: o retrato do que a Rainha da Borborema viveu em 2020
Campinenses morreram, São João foi cancelado, mas a esperança não morreu.
Publicado em 11/10/2020 às 4:27 | Atualizado em 07/05/2024 às 14:15
Onze de outubro. Prévia do feriado de Nossa Senhora Aparecida no Brasil, e em Campina Grande, aniversário de 156 anos de emancipação política da cidade. Pode-se dizer que, a partir de 2020, o onze de outubro ganha um novo significado para os campinenses. Passa a ser uma data para eles refletirem sobre tudo o que a cidade, assim como o resto do mundo, passou neste ano. Quanta coisa mudou. E quanta coisa ainda vai mudar.
Entre as coisas que mudaram, minha realidade pode ser inclusa. Há um ano, em 2019, escrevi uma série sobre os motivos pelos quais os campinenses poderiam comemorar o aniversário de 155 anos da cidade. Não imaginava que, meses depois, veria essa cidade, onde nasci e cresci, enfrentar uma das maiores crises de sua história, e muito menos que precisaria escrever sobre seu aniversário de 156 anos estando em casa, pelo mesmo motivo que tem feito Campina se reinventar. A Covid-19.
Essa nova doença, o novo coronavírus, e todo o cenário de guerra imposto pela pandemia que já vitimou mais de 2,9 mil paraibanos, tem feito a Rainha da Borborema se mostrar grande. Na luta travada contra o inimigo invisível, Campina assumiu o posto de referência para atendimento de pessoas de pelo menos 77 outros municípios da Paraíba. A rotina mudou de maneira repentina e fez até o que a cidade tem de maior em todo o mundo, o São João, ser cancelado.
Qual 'campinense raiz' poderia imaginar os meses de junho e julho sem São João? O Parque do Povo sem forró? O bairro das Malvinas sem ensaio de quadrilha junina... E passado o período de festas juninas, com início da campanha eleitoral, quem diria que não veríamos as ruas do José Pinheiro e da Liberdade sediar os famosos comícios, palcos de personagens políticos tradicionais na região? O Calçadão da Cardoso Vieira sem ninguém. Muita coisa mudou, mesmo.
Momento histórico
Nos últimos sete meses, infelizmente, centenas de famílias choraram a morte de seus entes queridos na cidade. Conforme dados da Secretaria de Estado da Saúde (SES), o novo coronavírus tirou a vida de 394 campinenses, e mais de 13 mil foram infectados. Para evitar que mais gente contraísse a Covid-19, espaços espaços comuns e até imperceptíveis se tornaram referência - literalmente.
A Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do bairro do Alto Branco, por exemplo, passou a ser a "porta de entrada" para pessoas infectadas pelo novo coronavírus, quando até então, era mais uma unidade de saúde comum, utilizada apenas em emergências. Em poucos dias, um novo local para atender os doentes foi erguido, no anexo do Hospital Municipal Pedro I, que hoje, após a queda no número de novos casos de Covid-19, é o único lugar onde os infectados são atendidos.
O cenário de guerra também modificou a rotina de espaços artísticos, como do Teatro Municipal, que durante meses fechou as portas e suspendeu toda programação especial para evitar possíveis contágios pela Covid-19. O entorno do Açude Velho, famoso por proporcionar caminhadas e momentos de descontração entre os moradores da cidade, também precisou ser interditado para evitar aglomeração de pessoas.
Por outro lado, uma verdadeira operação logística entre hospitais e órgãos de saúde foi feita para dar conta da demanda de pessoas doentes. Pôde-se notar a união entre profissionais de saúde que durante o período crítico da pandemia. Eles foram os verdadeiros protagonistas. Também se pôde ver uma onda de solidariedade por vários locais da cidade, fazendo o campinense ter esperança em dias melhores.
Campinenses de coração contra a Covid-19
Mas, como fazer surgir a esperança em tempos tão difíceis? Campinenses de coração provaram que é possível. Profissionais de saúde e de tecnologia, marca da Rainha da Borborema, que vieram de outras cidades para estudar aqui, ficaram na cidade e a ajudaram a enfrentar a pandemia, desenvolvendo soluções de enfrentamento ao novo coronavírus.
Foi assim com a pesquisadora Yasmine Martins, que é natural de Juazeirinho, e coordena o Laboratório de Tecnologias 3D do Núcleo de Tecnologias Estratégicas em Saúde (Nutes) da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), em Campina Grande. Em março, no início da pandemia, ela e outros pesquisadores sentiram a necessidade de fazer algo que pudesse ajudar a Rainha da Borborema de algum modo a superar a crise.
O resultado foi a produção de cerca de 60 mil protetores faciais, os 'face shields' anatômicos, para profissionais de saúde de todo o Brasil. Além dos protetores, os pesquisadores também desenvolveram peças de reposição de ventiladores pulmonares, os respiradores, clipes para intubação, e soluções para demandas internas do Hospital de Emergência e Trauma de Campina Grande, onde 60 leitos foram destinadas ao tratamento de infectados pelo coronavírus na 'Ala Covid-19'.
Para a pesquisadora, o desenvolvimento de soluções de enfrentamento à pandemia só foi possível porque Campina Grande é um polo de tecnologia.
"Conseguimos utilizar todo o conhecimento adquirido em instituições públicas em prol da população e do enfrentamento ao coronavírus, e nos orgulhamos em poder contribuir com Campina Grande. Tudo que fizemos só foi possível porque aqui temos incentivo em ciência e tecnologia, e nesse momento aplicamos nosso conhecimento.", comentou.
Enquanto os pesquisadores trabalhavam nas universidades, no hospitais os profissionais travavam uma luta em prol da vida. O médico infectologista Rodolpho Dantas, que é natural de Natal, no Rio Grande do Norte, e mora em Campina Grande, se mostrou preocupado desde o início da pandemia, e até enfrentou dificuldades para ser "levado a sério".
Os dias passaram, as infecções por Covid-19 cresceram de maneira expressiva em Campina Grande, e ele, assim como vários outros profissionais de saúde, passaram a viver para assegurar a vida dos campinenses.
"Médico luta pela vida, mas é uma luta desigual porque no fim das contas a gente sabe que a única coisa que não podemos fugir, é da morte. Mas é muito triste porque é uma doença avassaladora, em 24 horas a situação muda completamente. Isso foi o que mais me marcou. Me mostrou o quanto somos pequenos. Mas fazer o que gosto na área que me preparei, e aqui em Campina, me deixa muito realizado.", explicou.
Além de trabalhar no enfrentamento ao coronavírus no Hospital Universitário Alcides Carneiro (HUAC), Rodolfo também desenvolveu uma curadoria com as principais informações sobre a Covid-19 para estimular o desejo de prevenção à doença na população campinense. A pandemia não acabou, mas o médico, assim como inúmeros profissionais de saúde que estão ajudando Campina a superar essa crise, mostra orgulho por ter feito parte da história.
"Campina Grande é grande, e se mostrou grande, como diz o nome. A cidade conseguiu se preparar, se organizar, e esse período foi muito importante pra Campina Grande mostrar a força que tem. Isso me dá orgulho, porque mesmo não sendo campinense de certidão, sou de coração.", disse.
Retratos do último ano
Apesar de a pandemia do novo coronavírus não ter acabado, o teor histórico do período já pode ser sentido. E foi justamente pensando na importância do registro de tudo que Campina passou nos últimos meses, que fotógrafos da cidade produziram um acervo com o que mais os chamou a atenção.
No mês de março, início da pandemia, a fotógrafa e estudante de jornalismo Ester Vasconcelos se inspirou em mulheres fortes, que "se importaram com a história e deixaram os medos de lado para eternizá-la", e saiu às ruas de Campina Grande, cidade onde nasceu e mora, para registrar a pandemia.
Andando pelas ruas, conhecendo uma história e outra, Ester chegou até a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) no Hospital Pedro I, referência no tratamento de Covid-19 em Campina. Ela, que retratou fatos e momentos importantes, como todas as imagens publicadas até agora nesta reportagem, afirma que a expressão e solidariedade dos campinenses foi o que mais lhe marcou neste período.
"Foi um ano bem atípico. Todos sentiam medo, estavam assustados, mas cada um expressava de uma forma. Mas o campinense é um povo que realmente se importa. São pessoas que abraçam causas, não são apáticas ou frias. Vi muita gente ajudando e se importando", comentou.
Já o fotógrafo Emanuel Tadeu, renomado nacionalmente por registrar imagens do São João de Campina Grande, usou as lentes para retratar uma tradição descolorida. O apagar das luzes, provocado pela Covid-19, teve como consequência o cancelamento da festa que é "a extensão do ser" do fotógrafo. A pandemia fez ele enxergar a cidade de uma forma diferente.
"Dias difíceis, de perdas e incertezas. Quando me veio a notícia de que não iria ter São João, foi um choque. Fotografo essa festa há cinco anos, e o São João sempre me trouxe muitas coisas boas. Visitar o Parque do Povo sem ver o colorido, sem a alegria e o brilho, foi bem impactante. Então diante disso criei uma série sobre a saudade que a pandemia trouxe.", explicou.
A série "O Descolorir da Tradição" mostra como foi o São João de Campina Grande em 2020. Sem festas, sem brilho e sem cor, as pessoas que fazer o Maior São João do Mundo puderam expressar ao fotógrafo o que sentiam naquele momento. E de certa forma, o que todos os campinenses sentiam também.
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"Eu não poderia deixar passar em branco. Me veio ideia de fotografar as pessoas que fazem a festa, ambulantes dançarinos apresentadores, cantores, cordelistas.. Quem dá vida a festa. Uma forma de mostrar que os sonhos daquelas pessoas se encontravam naquele momento em quarentena por não puderem viver Campina Grande.", comentou.
Emanuel e Ester retrataram o que toda a população de Campina Grande viu nesses últimos meses. O que eu, mesmo em casa, vi e tentei escrever. O capítulo que, seria bom esquecer, mas será necessário lembrar. O ano em que Campina se viu crescendo em um ritmo tão acelerado que ainda é difícil assimilar. Os 156 anos de Campina Grande.
Sob supervisão de Jhonathan Oliveira*
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