O céu estava cinza e o Brasil vivia o auge da Ditadura Militar. Era 24 de agosto de 1975, e o general Ernesto Geisel ocupava o poder. Na Paraíba, uma grande comemoração estava marcada para esse dia. Na área do Cassino foram colocados tanques de guerra, armamentos pesados e outros equipamentos para exposição ao público, durante as festividades do Dia do Soldado, comemorado um dia depois. Mas o forte do evento era o passeio na barca, chamado de chata, uma embarcação simples, de médio porte, que faria a volta na Lagoa.
Nesta segunda-feira (24), o JORNAL DA PARAIBA conta detalhes da tragédia a partir das lembranças de testemunhas oculares, pessoas que estiveram no local e que por um motivo ou outro acabaram escapando. Os relatos são marcados pela emoção de quem presenciou as cenas de terror e angústia que culminaram com a morte de 35 pessoas, sendo 29 crianças.
A memória de quem presenciou a tragédia ao vivo
O jornalista e historiador Gilvan de Brito não esquece aquele dia. Eram quase 17h quando ele chegou com os três filhos na Lagoa. Os meninos estavam eufóricos com a comemoração. Queriam passear na barca, mas o jornalista foi logo dizendo que não, “de jeito nenhum”. A ausência de salva-vidas foi a justificativa dele diante para as crianças. “Havia uma enorme fila para entrar, parecia ser realmente a última viagem”, lembra. O passeio em torno da Lagoa durava em torno de 20 minutos e parecia até ser a única opção de lazer para muitas crianças. Mais cedo, Brito teve um sonho estranho, com pessoas mortas. Logo um pensamento veio à sua cabeça. “O mês de agosto, pela coincidência de tragédias era considerado o mês de desgosto, das desgraças, da infelicidade e do agouro”, destaca no livro 'Opus diaboli: a Lagoa e outras tragédias', no qual conta a história da tragédia com riqueza de detalhes. O mês de agosto de 1975 seria mais de um tristeza.
Era chegado o instante da última viagem. No barco, com capacidade para 60 pessoas sentadas, entraram mais de 100, segundo o historiador. Ele lembra que a estrutura era muito simples, o que o fez ficar arrepiado, como em filme de premonição. “O piloto, por um instante, hesitou em ver o excesso de peso e o perigo, mas acabou dando partida, atendendo aos pedidos de crianças e adultos”, frisa. O barco saía das imediações da rua Getúlio Vargas e dava uma volta no sentido horário em torno da fonte luminosa. Concluída a viagem, refazia o percurso. Pela superlotação, mal dava para localizar o barco nas águas da Lagoa, mas as pessoas estavam felizes com aquela viagem, a última para alguns. Segundo o historiador, logo as pessoas que estavam em terra começaram a se preocupar. O barco parecia estar afundando lentamente.
A partir desse instante, os momentos seriam de angústia. Eram gritos de pais e mães desesperados que haviam deixado os filhos passearem na embarcação. Foi possível observar pessoas caídas na Lagoa com as mãos levantadas pedindo socorro. “Naquela hora tomei uma decisão que julguei a mais importante da minha vida, que foi pegar o carro e me dirigir até à Rádio Tabajara, na Pedro II, para anunciar o que estava se passando e pedir a ajuda dos Bombeiros”, afirma Brito.
O resgate e a dor das famílias
“Ainda se podiam ver as pessoas sobre o barco, que não afundara totalmente, mas já se viam algumas apenas do joelho para cima. Pais empunhando crianças para o alto, adultos e crianças maiores ainda se encontravam no que restava do barco meio afundado”. De acordo com o historiador Gilvan de Brito, aos poucos as pessoas foram desaparecendo nas águas da Lagoa do Parque Solon de Lucena, considerado um dos principais cartões-postais de João Pessoa, e que viria a ser palco de outras tragédias mais tarde.
Ao mesmo tempo que o Corpo de Bombeiros chegou ao local para fazer o resgate, voluntários que ouviram a notícia pelo rádio também apareceram com boias para ajudar a salvar as vítimas. À medida que a noite se aproximava, a procura pelas vítimas ficava cada vez mais difícil. Dentre os sobreviventes estavam os que sabiam nadar e, conseguiram, mesmo com o desespero, esperar o socorro dos Bombeiros.
“Mas isso não foi possível para muitos porque o líquido escurecido pela poluição impedia a visão dos nadadores”, destaca. Um soldado da PM, inclusive, mergulhou para ajudar as vítimas havia retirado duas crianças, e depois não foi mais visto quando voltou para resgatar a terceira. Foi um triste espetáculo acompanhado de perto por milhares de pessoas, que pouco ou nada podiam fazer diante da situação.
No dia seguinte, ao retornar para a Lagoa para fazer a cobertura jornalística, Gilvan de Brito viu uma das piores cenas de sua vida: dezenas de corpos de crianças, “enfileirados sobre a grama, à espera do carro do Instituto de Medicina Legal da Paraíba (IML-PB)”. Sentado ao lado dos corpos, estava um homem, em prantos, desesperado, perguntando aos céus o porquê daquilo ter acontecido. Ele perdeu a mulher os três filhos na tragédia.
A história de quem não conseguiu entrar no barco
Como todos os anos, Adinalva Lima não perdia um evento na Lagoa. Juntava as amigas e colocava roupa nova para prestigiar as comemorações realizadas no local. Naquele ano, 1975, a grande expectativa era para o Dia do Soldado. O sobrinho, Alexandre, de 4 anos, também se empolgou ao ouvir Adinalva combinando o passeio com as amigas. “Tia, me leva, por favor”, disse o garoto. Ela não teve como recusar o pedido e o levou. A Lagoa estava em festa. Perto do Cassino, vendedores de algodão doce e de pipoca disputavam a atenção das crianças. As famílias esperavam, ansiosas, para dar uma volta no barco do Exército Brasileiro. Alexandre e Adinalva observavam tudo. O menino, então, decidiu que também queria passear na embarcação. A tia, como se prevendo alguma tragédia, dizia que não, pois o barco estava cheio demais. Mesmo assim, acabaram indo para a fila. Adinalva, Alexandre e as amigas dela. O garoto ia subindo no barco, quando sentiu alguém puxando-o pela camisa. Era um dos soldados que controlava a entrada. Olhando para Adinalva, ele disse: “O barco já está muito cheio, não vai dar para vocês irem. Agora, só no ano que vem”. Diante daquele aviso, o menino chorou, inconformado. A tia, por sua vez, ficou aliviada. Depois da decepção, o grupo voltou a se distrair, inclusive o menino, que agora brincava de bola de gude com outros garotos de sua idade. Adinalva e as amigas falavam sobre novelas quando começaram a ouvir os gritos. “Foi muito desespero, era gente chorando e gritando pra todo lado. É uma cena que eu jamais vou conseguir tirar da cabeça”, afirmou. Hoje, Adinalva mora no 10º andar do edifício Caricé. Da sua janela, a imagem que ela tem à frente é da Lagoa, o que a impede de esquecer a tragédia.
As lembranças de um soldado que conseguiu salvar duas vidas O soldado Zilton Nascimento havia ingressado no Exército Brasileiro em 1974. Um ano depois ele vivenciou o drama da Tragédia da Lagoa. Nascimento foi um dos soldados escalados para o evento. Recebeu como missão controlar a entrada e saída das pessoas na embarcação. Hoje, 40 anos depois, ele relembra o sofrimento daquele fim de tarde que não sai da memória. “É algo que a gente não consegue esquecer, pode passar o tempo que for”, declarou. Segundo Nascimento, embora o evento também contasse com apresentação de tanques e armamentos, a grande atração era mesmo a viagem no barco. Na fila não paravam de chegar pessoas interessadas no passeio. Nascimento e o colega tentavam, em vão, explicar que havia gente demais. “Uma das coisas que me preocupava bastante é que não havia salva-vidas na embarcação”, contou. O soldado estava no barco no momento da última viagem. Segundo ele, eram quase 100 pessoas onde só cabiam 50. No momento que o barco começou a virar, o desespero tomou conta de todos. “Já era fim de tarde quando a tragédia ocorreu. Vi crianças e adultos caindo nas águas turvas da Lagoa e ainda consegui salvar duas pessoas. Quando ia voltar para resgatar mais alguém, senti que uma pessoa segurou na minha perna e eu fui puxado para baixo, mas consegui sair”, relembrou.
Uma tragédia atribuída ao Exército em tempos de Ditadura Depois do acidente, não faltaram acusações ao Exército Brasileiro, que teria sido irresponsável ao permitir o excesso de passageiros na barca, e também pela ausência de salva-vidas. Em resposta ao JORNAL DA PARAÍBA, o 1º Grupamento de Engenharia enviou, na semana passada, a seguinte nota sobre o fato: “lamenta profundamente o trágico acidente ocorrido em 24 de agosto de 1975, e se solidariza com as famílias que perderam seus entes queridos naquele fatídico dia. Aquele infortúnio deixou uma marca indelével na história de João Pessoa e um profundo pesar no coração da família militar”. A nota informa ainda que “todas as providências cabíveis, à época, foram tomadas”. Na época da tragédia, o posicionamento oficial do Quartel General dava conta que a barca havia sido emprestada pelo 7º Batalhão de Engenharia de Combate de Natal e que sua capacidade de 8 toneladas. A mesma embarcação havia sido usada no ano anterior, com a mesma finalidade, segundo o Exército.
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