VIDA URBANA
ECA 25 anos: uma história de tragédia e resgate de direitos
Gabriel perdeu a garantia de uma infância tranquila quando levou um tiro que o deixou sem andar, aos 13 anos. Segurança é assegurada pelo Estatuto.
Publicado em 13/07/2015 às 17:38
Toda criança e adolescente tem o direito de crescer com saúde, alimentação, habitação e recreação em um ambiente de compreensão, tolerância e paz. Sim, essas condições são garantidas pela Lei 8069/1990, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) há 25 anos. Por isso, neste dia 13 de julho, data em que se comemora a criação desse conjunto de normas, trazemos um relato que expõe a importância de proteger integralmente essa parcela da população.
Nossa história começa na comunidade Renascer, em João Pessoa. Lá, a 'pelada' no fim das tardes de domingo era costume entre os moradores e fazia a alegria de Gabriel*, de 13 anos. Para ele, a quadra de futsal da 'Praça da Alegria' era considerada uma segunda casa, uma vez que era naquele espaço que ele entrava em contato semanalmente com sua paixão: o futebol.
E foi numa tarde aparentemente tranquila, no dia 22 de setembro de 2013, que a 'Praça da Alegria' se tornou palco de tristeza. Uma tragédia que mudaria os rumos da vida de Gabriel aconteceu e o grito de gol se transformou em grito de medo. A correria dentro de campo, normalmente para alcançar a bola, foi a única alternativa para fugir das balas, disparadas na direção errada, que atingiram em cheio o adolescente e seus dois companheiros de time.
Quando lembrou a cena, Gabriel, que ainda fala com dificuldades, apesar de vir apresentando evoluções, disse apenas 'pei, pei, pei', onomatopéia referente ao barulho de tiro. Com as mãos na cabeça, ele fez exatamente os mesmos gestos que havia feito no momento do acontecimento e que infelizmente não impediram a tragédia. Isso, porque mesmo tentando se proteger, foi justamente na cabeça que o adolescente foi atingido pelo tiro. Apenas um tiro, mas o suficiente para antecipar os dias difíceis que ele teria de enfrentar.
A mãe de Gabriel, Maria**, também lembra esse dia. Ela relata que estava indo para a casa da mãe, quando ouviu o barulho dos tiros e, assustada, correu. Ao chegar na praça, como a maioria dos moradores da comunidade, ela se aproximou da quadra para ver o que tinha acontecido e percebeu que o adolescente, primogênito dos seis filhos que tinha na época, havia sido uma das vítimas.
"Eu nem imaginava que Gabriel estaria lá, fui mesmo na curiosidade de entender o que tinha acontecido. Quando o vi deitado no chão, achei que estava morto. Foi um desespero, meu Deus! Meu filho não merecia aquilo", contou, demonstrando indignação e ao mesmo tempo tristeza no tom da voz. Sobre o ocorrido, Maria ainda menciona que os moradores chegaram a colocar um lençol sobre o adolescente, que foi visto por um policial respirando e levado ao hospital por uma viatura.
Por sorte, milagre, acaso do destino ou força de vontade, Gabriel não morreu. Mesmo sendo dado como morto por portais de notícias da cidade, um erro que nunca foi consertado ou investigado pela mídia, mas que não influenciou seu futuro.
Direito a ter direitos
Gabriel passou quatro dias em coma, oito na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e mais 20 na enfermaria. "Ele nasceu de novo", afirmou a mãe. Quando teve alta do hospital, o menino não falava, não andava e não se lembrava das pessoas. Mas os seus sonhos continuavam nítidos.
Preocupada com a situação do filho, Maria achou que, primeiramente, buscar uma assistência médica para ele era o mais importante. E foi em um Posto de Atendimento Médico (PAM) de sua comunidade que conseguiu defesa para um dos direitos dele: o da saúde. As sessões de fisioterapia e de fonoaudiologia eram indispensáveis para a recuperação de Gabriel.
Sensibilizada com a situação, a fisioterapeuta do PAM Andreia Tomaz sublinha que se envolveu com a história. Ela destaca que a disciplina e a alegria do adolescente vêm sendo fatores essenciais para seu restabelecimento. “A cada sessão me surpreendo com as atitudes dele. Está sempre sorridente e participativo. Toda semana aparece com uma novidade”, comentou.
Gabriel age como um guerreiro, tanto que, quatro meses depois de ser cuidado pela família e pelos profissionais de saúde, voltou a frequentar diariamente a instituição beneficiente que costumava frequentar com os três irmãos. Localizada no bairro de Jaguaribe, a entidade oferece um ambiente em que os direitos à infância são respeitados e garantidos. Isso com educação, segurança, lazer e, sobretudo, esperanças de um amanhã melhor.
Apoio e acolhimento
Querido pelos educadores e funcionários da Legião da Boa Vontade (LBV), Gabriel foi bem acolhido por todos em seu retorno. Ellison Cardoso e Erianna Fernandes, professores de caratê e educação física, respectivamente, foram os que mais se animaram com a volta do adolescente.
“Ele sempre deixou muito claro o desejo de ser jogador de futebol. Mesmo com as dificuldades existentes, a busca por esse sonho continua de pé e só está ajudando na sua recuperação. A cada dia que passa é visível a sua evolução”, mencionou Erianna, satisfeita em poder colaborar com esse processo. “É a nossa maior recompensa”.
Já o carinho especial de Elisson pelo adolescente tem explicação. É que Gabriel foi um dos primeiros a participar das aulas de caratê ministradas pelo professor. "Aqui na LBV a gente deixa a critério da criança participar ou não, e ele demonstrou muita vontade logo de início”, declarou.
Firme e forte nas aulas de Ellisson, Gabriel consegue resultados que surpreendem a todos. No último encontro com a fisioterapeuta, durante os exercícios de rotina, Andreia contou que ele fez questão de demonstrar os golpes que aprendeu. "Ele ficou gesticulando, apesar de limitado, e demonstrando", declarou a profissional.
Mesmo sem se conformar, a mãe de Gabriel está feliz com o caminho que o filho trilha e já faz planos para o futuro do adolescente: ela quer que ele retorne às salas de aula e tenha uma formação. Pois é, a volta por cima de Gabriel é cada dia mais uma realidade por meio da união desse e de outros direitos garantidos pelo ECA. E o jovem, que não desistiu de sonhar, segue um ritmo de vida diferente, tendo que adiar os gols dentro de campo para poder golear suas limitações fora dele e ganhar o jogo da vida.
*Gabriel e **Maria são nomes fictícios para preservar as imagens dos personagens.
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