VIDA URBANA
Uma nova catequese indígena acontece em pleno século XXI na PB
Templos se multiplicam nas aldeias da Baía da Traição, Rio Tinto e Marcação e dividem índios entre costumes e religião.
Publicado em 04/10/2015 às 13:00
Nas terras indígenas, a presença de templos religiosos chama a atenção de quem visita a localidade. Nas aldeias dos municípios de Baía da Traição, Rio Tinto e Marcação, Litoral Norte, a impressão que se tem é que as igrejas se multiplicam em busca de fiéis. E conseguem. Mesmo em dias de semana os cultos reúnem de 100 a 200 pessoas. Nas terras potiguaras é comum encontrar índios divididos entre os costumes de seu povo e a religião. Muitos abandonaram o toré e a arte de pintar o corpo.O que antes era tido como manifestação cultural de um povo, agora é classificado como 'coisas do mal'.
A realidade vivida nas aldeias lembra o período de colonização do Brasil, quando os índios foram catequizados pelos padres jesuítas. A situação é tão delicada que um pastor que atuava em uma igreja evangélica de Baía da Traição chegou a ser expulso após fazer pregações atacando os costumes indígenas.
Outro fato que merece destaque é o de uma escola, na qual o diretor, evangélico, vetou a dança do toré. Nem mesmo em comemoração ao Dia do Índio, os alunos, indígenas, podem fazer a dança – muito menos pintar o corpo. O toré é um ritual sagrado dos índios. A pintura no corpo é uma expressão de arte, que guarda em si muitos significados. Eles não dançam por dançar ou pintam o corpo sem motivo. Há toda uma representação por trás disso.
O conflito com o pastor aconteceu há cerca de um ano e meio. Segundo o chefe da Funai de Baía da Traição, Irenildo Cassiano Gomes, a situação veio à tona depois que uma escola convocou os alunos para dançar o toré e as crianças disseram que os pais não permitiam. A partir daí eles descobriram que a resistência vinha do pastor. “Realmente isso aconteceu. O pastor não aprovou o convite da escola. Ele dizia aos fiéis que não via esse costume com 'bons olhos' e falou coisas desagradáveis a respeito”, declarou.
Embora faça parte da cultura indígena, nenhum índio é obrigado a dançar o toré ou a pintar o corpo. “O índio é livre para seguir qualquer doutrina religiosa”, frisou. O questionamento foi em relação ao ataque aos costumes indígenas durante os cultos, segundo os moradores da localidade. O pastor teria dito que o toré era 'coisa do demônio', o que teria causado a repulsa por parte dos índios evangélicos. O chefe da Funai disse que considera esse fato como algo isolado e que a presença de templos religiosos, de uma forma geral, é positiva.
As terras indígenas potiguaras têm, ao todo, 32 aldeias, sendo 15 em Marcação, 13 em Baía da Traição e 4 em Rio Tinto. Nesses municípios a população conta com igrejas de várias denominações religiosas, dentre elas a Igreja Católica e templos evangélicos, como a Assembleia de Deus, Batista e Madureira.
"Para mim, o toré é coisa do maligno"
Desde que 'aceitou Jesus', como costuma frisar, a dona de casa Mislene Ramos proibiu as filhas, indígenas, de dançar o toré e de pintar o corpo durante as festividades realizadas na escola, no município de Baía da Traição. Mislene, que é neta de índio, casada com índio, não esconde a insatisfação com os costumes desse povo. “Para mim, o toré é coisa do maligno. Essa dança invoca forças do mal, as pessoas ficam manifestadas”, declarou.
Frequentadora assídua de uma igreja evangélica (Assembleia de Deus) na aldeia Galego, a dona de casa revelou que foi à escola onde as filhas estudam para informar a direção sobre seu posicionamento. “Cheguei para a diretora e disse que não é para pintar minhas filhas de jeito nenhum. Não concordo com essas coisas. Deus não quer que a gente pinte nosso corpo. Dançar o toré, então, é algo inimaginável”, frisou.
O discurso inflamado da dona de casa não é o único. A comerciante Edvânia Galdino, mãe de três crianças indígenas, também não concorda com as tradições. Ela disse que mudou de opinião depois que se converteu e passou a frequentar os cultos evangélicos. “Um dia meu filho do meio inventou de pintar o corpo em casa e ensaiar o toré. Eu disse a ele que isso não agradava a Deus. Ele não vai deixar de ser índio por isso”, frisou. Apesar do posicionamento, Edvânia disse que não critica os índios que dançam o toré. “Cada um faz o que quer de sua vida. Até acho o toré bonito, mas sei que não posso servir a dois senhores”, argumentou.
Dona de casa Mislene Ramos diz que considera dança como algo que "invoca forças do mal". (Foto: Francisco França)
O pastor José Carlos de Lima, presidente da Secretaria de Missões da Assembleia de Deus na Paraíba (Semad), disse que a igreja nunca proibiu a dança do toré ou a pintura do corpo aos índios evangélicos. Segundo ele, não há nenhuma orientação nesse sentido. “A gente não proíbe de jeito nenhum. Cada pessoa é livre para fazer o que quiser, todos têm o direito de ir e vir. Eu, como presidente da Assembleia de Deus, asseguro que isso nunca aconteceu”, afirmou.
Ainda de acordo com o pastor, a arte de pintar o corpo ou mesmo de dançar o toré, como é costume entre os indígenas, devem ser vistos como a opção de cada um. “A maior autoridade é a palavra de Deus. Quem quiser pode pintar o corpo, pode dançar o que quiser, não vamos proibir”, declarou. Em seguida, o pastor disse que “quem quiser mudar de vida tem que seguir a palavra de Deus".
Ataque aos costumes é negativo
Os reflexos da intolerância estão por toda parte. Em uma das escolas indígenas de Baía da Traição a reportagem conversou com uma menina de 8 anos. Os cabelos negros e lisos e os lábios avantajados são traços que logo denunciam sua descendência. Na sala de aula, ela disse que se vê diferente dos colegas. Não por ser indígena, mas porque não pode fazer o mesmo que algumas crianças fazem: pintar o corpo segundo a tradição indígena. A vontade dela esbarra no pensamento dos seus pais, que depois que passaram a frequentar uma igreja evangélica local proibiram a filha de fazer a pintura.
Índios afirmam que discriminação é uma realidade na rotina deles. (Foto: Francisco França)
A menina não entende a real problemática que há por trás desse pensamento. Os pais, possivelmente, também não compreendem que ao impedir a filha de pintar o corpo, estão negando sua própria identidade. Embora o cenário e os personagens sejam outros, a história parece ser a mesma vista durante a colonização do Brasil, quando houve a catequização dos índios.
De acordo com Nelimei Galdino, diretora da Escola Municipal Antônio Azevedo, o ataque aos costumes indígenas é muito negativo, principalmente quando os educadores unem esforço para revitalizar a língua tupi-guarani nas escolas. “Infelizmente é um problema real que temos. Não são todos os alunos, mas temos casos de crianças e adolescentes que são impedidos pelas famílias de dançar o toré e também de fazer as pinturas no corpo. Isso nos deixa triste demais”, afirmou. A reportagem tentou contato com a Secretaria de Educação de Baía da Traição, mas não obteve êxito.
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