CULTURA
A última noite de Xerazade
Publicado em 07/10/2012 às 8:00
Foram certamente mais de mil e uma noites de trabalho árduo. O quarto e último volume de 'O Livro das Mil e Uma Noites (Globo, 528 páginas, R$ 59,90) acaba de aportar às prateleiras encerrando um longo empreendimento iniciado há 9 anos, quando o tradutor Mamede Mustafa Jarouche debruçou-se sobre o chamado 'ramo sírio' da narrativa.
A empreitada pioneira de verter a obra diretamente do árabe para o português chega agora ao fim com as histórias do 'ramo egípcio', coletadas pelo tradutor em oito fontes manuscritas que datam de um período compreendido entre o século 17 e o 19.
"O projeto começou em 2003, e já deveria ter sido encerrado em 2008 ou 2009. O atraso se deveu a inúmeros fatores e contratempos, além da óbvia impossibilidade de me dedicar exclusivamente ao assunto", conta Mamede Jarouche, paulista de Osasco (18 quilômetros da capital), filho de imigrantes libaneses, doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo.
"Existem várias dificuldades (na tradução), que por vezes se agudizam, e noutras se matizam. Nenhum dos manuscritos com os quais trabalhei era ilegível, mas muitos deles apresentam pontos ilegíveis e trechos lacunares, e nesses casos você é forçado a recorrer a outras fontes. Quando existem, ótimo; mas, quando não existem, chega a ser desesperador, e o tradutor, não raro, tem de se valer da intuição para interpretar trechos ilegíveis ou obscuros e completar as lacunas".
Tal 'desespero' parece ter infundido em Mamede Jarouche um sentimento de frustração confessado de antemão na nota introdutória ao volume, quando escreve que, ao receber o convite da Globo Livros para deitar-se nos braços de Xerazade (grafado em outras traduções como 'Sherazade' ou 'Sheherazade') , aceitou o desafio "iludido por uma já desvanecida nesga de entusiasmo", acreditando "na factibilidade do recenseamento da maioria das fontes manuscritas".
"A frustração notada talvez se deva ao estresse, pois de fato a fase final da jornada foi bem estafante, e para ser franco ainda estou me recuperando da maratona", confirma o tradutor. "Claro, não se pode evitar aquela sensação de perda ao fim de uma tarefa", completa.
Tarefa concluída deixando pendente uma 'vulgata' (espécie de edição apócrifa do texto) publicada no Cairo (Egito), em 1835, e em Calcutá (Índia), entre 1839 e 1842. Segundo Jarouche, tal fonte "é tão legítima - e tão problemática - quanto qualquer outra, e dela passarei a me ocupar num futuro por ora impreciso".
Entre as histórias contadas por Xerazade, o tradutor diz nutrir um sentimento especial por uma publicada no primeiro volume da série: "Gosto de muitas, mas me fascina particularmente a história de um dos dervixes. Entre outras peripécias, ele vai parar num castelo repleto de tudo quanto se pode apreciar. Nesse universo maravilhoso existe uma única restrição: não entrar em determinado aposento, pois isso acarretaria a perda de todas as suas benesses. Pois bem, ele viola a restrição e perde tudo. É uma fábula que diz muito sobre a nossa condição humana".
Nas palavras de Jarouche, a tradução d'O Livro das Mil e Uma Noites é acolhida em um tempo de "tristeza" e "covardia": "Não penso exatamente que essa obra possa iluminar as mentes deste nosso tempo infeliz, embora contenha, na minha opinião, passagens verdadeiramente luminosas, em especial para os tolos que levam a sério os discursos moralistas. Este tempo é infeliz por definição: a infelicidade é pressuposto básico do presente".
Sem mencionar o Oriente, onde as questões de gênero, tão caras a este 4º volume da obra, ainda fomentam conflitos, Jarouche reflete sobre o Brasil e fala de um "moralismo sórdido" cevado por "aves predadoras" e "facistas": "(Elas) desaparecerão mais cedo ou mais tarde, creia-me, e teremos um céu bem mais risonho quando isso acontecer".
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