CULTURA
Biografia traz um novo olhar sobre a cantora Elis Regina
Às vésperas dos 70 anos da 'Pimentinha', nova biografia traz o retrato mais completo sobre a maior cantora que o Brasil já teve.
Publicado em 15/03/2015 às 8:19
A cena parecia surreal: por volta das nove da noite de um dia de dezembro de 1979 que a memória não alcança mais, dois senhores – Carlos Aranha e José Carlos Mendonça, o Pinga – convidavam as pessoas para entrar no Cinema Municipal, no coração de João Pessoa. Lá dentro, Elis Regina e seu grupo davam início a mais uma brilhante apresentação da cantora.
Pouquíssima gente, no entanto, se dispôs a pagar o ingresso para vê-la no cinema transformado em teatro.“Pinga me disse: eu assumo o prejuízo, mas todo mundo que passar por aqui a gente chama para entrar”, relembra Carlos Aranha a respeito de seu sócio na empreitada. “Elis nem desconfiou dessa manobra. Para ela, a casa tava cheia para vê-la”.
Elis chegava a João Pessoa para um show que a memória coletiva acredita ser a única passagem da cantora pela Paraíba, mas o professor Silvino Espínola recorda tê-la visto em um outro show, dessa vez no clube Astrea. Não tem certeza da data (a reportagem apurou que poderia ter sido dez anos antes do Municipal), mas lembra a primeira música que ela cantou no palco do clube: ‘Ye-melê’, de Luiz Carlos Vinhas.
Na próxima terça-feira, a cantora faria 70 anos se sua reluzente trajetória não tivesse sido interrompida na manhã de 19 de janeiro de 1982. A “careta” Elis surpreendia os fãs ao morrer em decorrência de uma mistura de cocaína e álcool, deixando de queixo caído uma nação inteira.
O final trágico de Elis é esmiuçado de forma inédita em uma nova biografia sobre a cantora. Elis Regina - Nada Será Como Antes (Master Books, 429 págs., R$ 49,90), do jornalista paulista Julio Maria, vai fundo na história da “Pimentinha” gaúcha, trazendo à luz histórias de bastidor nunca ditas em voz alta, ressaltando a qualidade ímpar da cantora e tocando em feridas que insistem em não cicatrizar, inclusive com a visão mais abrangente já publicada sobre a morte da artista.
A ideia começou como um livro-homenagem encomendado pela editora para ser lançado nos 30 anos sem Elis Regina, em 2012. À frente da editora, a apresentadora de TV Eliana Michaelichen, então casada com o primogênito de Elis, João Marcelo Bôscoli, queria fazer algo bonito para a sogra “in memorian”.

A tarefa era simples: Julio Maria colheria alguns depoimentos de fontes próximas a ele, como o produtor e apresentador de TV Luís Carlos Miéle - a unha da cutícula chamada Ronaldo Bôscoli (1928-1994), primeiro marido de Elis - e Amilton Godoy, pianista do Zimbo Trio que acompanhou (ou se fez acompanhar) por Elis nos anos 1960. No mais, era rechear a obra com muitas fotos.
Mas ao colher os depoimentos sobre a cantora, o jornalista percebeu que, 30 anos depois, as pessoas estavam bem dispostas a dizer o que nunca foi dito sobre Elis Regina e que poderia ter fôlego para ir além do Furacão Elis (1985), de Regina Echeverria, primeira grande biografia da cantora.
“Essa é a vantagem de escrever uma biografia 30 anos depois”, comenta Julio Maria, por telefone. “Na época em que a Regina Echeverria fez o levantamento para o livro dela, as pessoas não estavam querendo falar muito sobre a Elis (morta menos de três anos antes). Uns, porquê sentiam culpa de terem cheirado cocaína com ela, outros tinham trauma (do acontecido). Passados 30 anos, todos foram absolvidos e queriam falar”, avalia.
Então de duas ou três fontes, o livro passou a contar com mais de cem do quilate de Erasmo Carlos, Manoel Poladian, Nelson Motta e Pelé, que narraram passagens soberbas que ajudam a construir, com uma riqueza de detalhes, tanto a vida pessoal, quanto a profissional da cantora.
Três décadas depois Gilberto Gil e Milton Nascimento puderam, enfim, exprimir todo o amor que sentiam por Elis, um amor que ultrapassava os limites da admiração. Gil, por exemplo, embarcou na marcha contra a guitarra elétrica só para estar de braços dados com Elis. “Ele não acreditava uma vírgula daquele protesto, mas queria estar perto dela”, comenta o autor.

A coisa com Milton foi ainda mais profunda. “Ele sofreu mesmo com essa história, sofreu a ponto de nunca ter tido coragem para falar”, pontua Maria. “Toda musica que ele passaria a fazer, era para dizer a Elis o quanto ele a amava. Até mesmo as músicas que não falavam sobre isso diretamente”.
Personalidades como o crítico de música Zuza Homem de Mello, o músico e produtor Roberto Menescal e o executivo André Midani, então diretor da Philips que lançava os discos de Elis, se tornaram fontes recorrentes de consulta. "O Zuza me chamava na casa dele para mostrar uma entrevista que ele tinha feito com ela (Elis) para a rádio Jovem Pan que ninguém mais tinha, só ele”, revela Julio Maria.
Uma contribuição valiosa veio de Orphila Negrão (mulher de Walther Negrão, autor de telenovelas). Ela tinha guardado uma carta que Elis Regina escreveu ao filho João Marcelo quando ele tinha apenas um ano. Nela, a cantora escreve com o amor de mãe transbordando a folha: “... você construiu pacas. Você me pegou um bagaço daqueles, me ajeitou, me maneirou, me devolveu a risada do ginásio...”. João nunca teria lido essa carta.
Livro sai sem 'veto' dos herdeiros

Elis preparava um novo disco e namorava o advogado Samuel Mac Dowell. Na manhã de 19 de janeiro de 1982, ele atendeu uma ligação da cantora que não dizia nada com coisa alguma, até que a voz sumisse. Pegou um carro e voou até o apartamento de Elis para encontrá-la desacordada. Levou-a ao hospital, mas por volta do meio-dia, os médicos anunciavam que ela estava morta. O motivo: ingestão de cocaína e álcool.
“O grande lance (do livro) é passar a limpo como foi a última noite de Elis, como foi a entrada dela no mundo das drogas e porquê, de fato, ela morreu”, explica o biógrafo, acrescentando que, para isso, foi fundamental a predisposição de Mac Dowell em falar sobre os últimos dias com Elis como ele jamais falou e o acesso que o jornalista teve ao inquérito policial que apurou a morte da cantora, até então inédito a um biógrafo desse naipe.
Longe de ser um livro “chapa branca”, Nada Será Como Antes é o retrato mais contundente de quem foi Elis Regina, a "Pimentinha" de temperamento forte, competitividade acirrada e uma voz única para a música brasileira. “Entrevistei mais de 50 músicos e todos foram unânimes: Elis não desafinava nunca”, atesta o biógrafo, que não vê surgir, desde então, nenhuma cantora à altura da gaúcha.
Estão lá as passagens de Elis pela televisão, pelos palcos internacionais, ótimas histórias por trás de muitos discos, a relação dela com a Ditadura Militar e até o duelo com Hermeto Pascoal em Montreux, tudo narrado com habilidade cinematrográfica pelo texto de Julio Maria.
O calhamaço que ele lança na próxima terça-feira, em São Paulo, e dia 23 no Rio, está longe de ser a homenagem que a editora havia proposto no começo. Equilibrada, mostra os dois lados de uma artista que poderia ser generosa com seus músicos, mas implacável com outras cantoras de sua época, sem hesitar puxar-lhes o tapete.
Em um país, cuja legislação dá ao biografado ou seus herdeiros o poder irrestrito do veto, a chegada de Nada Será Como Antes é a maior vitória da liberdade de expressão em muito tempo. Submetido à análise de João Marcelo Bôscoli, Pedro Mariano e Maria Rita, os três filhos de Elis liberaram a publicação da obra sem que fosse alterado um ponto de exclamação. A história da música brasileira, a memória do país e os fãs não só agradecem, comemoram.
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