CULTURA
Chico Buarque se enreda na teia da autoficção
Personagens e cenários se esfumaçam sem uma devida transição, o que gera tropeços no ritmo.
Publicado em 11/02/2015 às 9:51 | Atualizado em 22/02/2024 às 17:53
Em O Irmão Alemão (Cia. das Letras, 240 páginas, R$ 39,90), o Chico Buarque, escritor, se confunde com o Chico Buarque, músico. Uma premissa básica da autoficção, território em que o ganhador do açodado prêmio APCA de melhor romance de 2014 (um mês depois do livro lançado, em dezembro) escolheu pisar justamente quando as bases deste território estão ruindo.
O romance sobre o meio-irmão de Chico, fruto de um relacionamento de Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982) em sua passagem pela Alemanha, exibe algumas das fragilidades de um procedimento que vem se saturando entre os prosadores contemporâneos e que estremece uma literatura até aqui elogiada pela justa distinção do restante de seu legado artístico.
Chico chega a utilizar o artifício do distanciamento do protagonista (apesar do relato em primeira pessoa, com diálogos se fundindo à narração, em indireto-livre - algo que, por sinal, ele faz muito bem). O artifício estremece, porém, quando o personagem, um professor de literatura com parcos conhecimentos musicais, começa a se trair e se valer do músico Chico para descrever cenas ao piano brindadas por citações a Schubert.
A cronologia da obra é também um ponto delicado. Narrada aos saltos, inclusive com uma hábil utilização do recurso de flashforward (antecipações de eventos que o narrador faz em pensamento ou em sonho), a história não suporta tão bem a não linearidade, revelando problemas estruturais nos rejuntes das cenas.
Personagens e cenários se esfumaçam sem uma devida transição, o que gera tropeços no ritmo. Talvez o personagem mais coerente seja exatamente o que menos se mostra: Sérgio Hollander (o alterego do pai, com o sobrenome ligeiramente alterado se justifica por uma dedicatória de João Guimarães Rosa - um dos documentos reproduzidos ao longo das páginas).
Os demais coadjuvantes reagem por vezes despropositadamente, em cenas de canhestrice inopinada, como quando o narrador repete a imagem de um soco-inglês sendo confundido com um chaveiro (páginas 22 e 60), numa autoparódia deslizante. Ou quando Chico força a barra para ficcionalizar episódios do Holocausto, da Ditadura e dos festivais da Record.
Na busca pelo irmão alemão, Chico encontra o pai: e é aí que a prosa rende seus momentos mais belos e virtuosos, em uma relação de silêncios que não calam a boa literatura.
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