CULTURA
'Corra!' é sátira sobre preconceito e paternalismo branco
Filme é divertido e ácido ao retratar "preocupação branca" com a discriminação racial.
Publicado em 25/02/2018 às 7:00 | Atualizado em 07/03/2018 às 17:32
Direção: Jordan Peele
Elenco: Daniel Kaluuya, Allison Williams, Bradley Whitford, Caleb Landry Jones, Stephen Root
★★★★☆
Muitos movimentos sociais são criticados atualmente por seu suposto autoisolamento e cerceio, por sua "incapacidade" ou "má vontade" em englobar toda a humanidade em uma utópica ciranda de aceitação e felicidade. O movimento LGBT, por exemplo, ao apontar a presença maciça de heterossexuais no seu meio; ou o movimento feminista, ao se ver constantemente agredido em suas tentativas de construir espaços voltados exclusivamente para mulheres. Corra! (Get Out!, 2017), filme escrito e dirigido por Jordan Peele que concorre ao prêmio de Melhor Filme no Oscar 2018, é um comentário necessário sobre situação semelhante na luta dos negros contra o racismo.
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Daniel Kaluuya interpreta Chris Washington, um fotógrafo negro que mantém um relacionamento com Rose Armitage (Allison Williams). Rose insistentemente pede para que Chris concorde em conhecer seus pais (todos brancos) e, apesar de sua hesitação, o fotógrafo acaba concordando em viajar para conhecer a família da namorada. No caminho, o casal acaba atropelando um cervo que cruzou a pista inesperadamente.
A figura do cervo é deliberadamente recorrente no filme. Nos anos que se seguiram após a Guerra Civil americana, o termo racista "black buck" ("cervo negro") era utilizado para se referir a homens negros que se recusavam a ceder à "autoridade branca" e eram vistos como rebeldes e violentos. Não é por acaso, portanto, que o diretor e roteirista Jordan Peele coloca um símbolo de discriminação racial como a primeira vítima do filme.
E não é por acaso que a enorme cabeça empalhada de um cervo pode ser vista na casa dos Armitage, exibida ostensivamente, como um troféu. Quando o casal conta sobre o animal atropelado na estrada, o pai de Rose, Dean (Bradley Whitford), revela, com prazer, seu desprezo pelos cervos: "essas coisas estão em todos os lugares, como ratos", diz.
Fora essas (não tão) sutis pistas jogadas por Peele, os Armitage parecem ser totalmente liberais e compreensíveis, modelos bem-informados e livres de qualquer preconceito ("eu teria votado em Obama uma terceira vez, se pudesse", esbanja Dean). Um outro sinal de alerta, entretanto, vem dos funcionários negros que trabalham para a família branca: a governanta Georgina (Betty Gabriel) e o caseiro Walter (Marcus Henderson), que agem sempre de forma automática e passiva.
A partir daí, o comportamento dos pais de Rose vai provocando estranhamento em Chris e no espectador. A chegada de vários amigos e familiares dos Armitage para uma festa deixa o fotógrafo ainda mais isolado e ameaçado entre a legião de brancos igualmente esclarecidos e "aliados" da luta negra (quase se dá pra ouvir "tenho vários amigos negros" entre os empresários e madames que transitam pela casa) e abre espaço para o longa fortalecer ainda mais a potente crítica que realiza.
Corra! vai transformando-se, assim, em um thriller igualmente divertido, ácido e sério ao retratar satiricamente a suposta "preocupação branca" com a discriminação racial. O filme se utiliza ainda de situações específicas para retratar as diferentes formas sob as quais o racismo se manifesta na sociedade americana (na brasileira também): seja na cena em que Chris é submetido cruelmente ao poder hipnótico da mãe de Rose, Missy (Catherine Keener); seja nos momentos em que policiais aparecem na trama.
Kaluuya destaca-se ao interpretar Chris com doses iguais de sensibilidade (especialmente nos momentos em que o passado doloroso do rapaz é revelado), inocência e esperteza; Allison Williams, por sua vez, interpreta quase duas personagens ao longo do filme. O roteiro consegue incorporar elementos de terror, comédia e romance, e a direção primorosa de Peele merece elogios especialmente no terceiro ato, quando nem protagonista nem público podem desfrutar de um minuto de sossego. O desfecho deixa brechas para questionamentos e críticas, mas é um lapso perdoável diante da obra inteira.
A mensagem crítica de Corra! ultrapassa a forma e ressoa ao final da exibição. E ela se faz ouvir desde o título: ao menor sinal de uma falsa-aceitação paternalista, superficial e falha em perceber as profundas rachaduras que sustentam as relações sociais - é melhor correr.
Confira as resenhas dos outros filmes que concorrem na categoria Melhor Filme no Oscar 2018:
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