CULTURA
História marcada para viver
Cabra Marcado para Morrer nasceu do interesse do paulista Eduardo Coutinho no assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira.
Publicado em 07/04/2012 às 7:00
A trajetória da realização de um dos documentários seminais da história do cinema brasileiro encontrou trechos acidentais e vários desvios até chegar ao seu produto final, no começo dos anos 1980.
Pelas vias paraibanas, Cabra Marcado para Morrer nasceu do interesse do paulista Eduardo Coutinho no assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira, no dia 2 de abril de 1962, há 50 anos.
Às vésperas do Golpe Militar, Coutinho começou a rodar uma ficção sobre o paraibano, em Pernambuco, até acabarem prematuramente as filmagens pela Ditadura recém-instaurada no país. A equipe teve que se refugiar no mato, acusados de comunistas cubanos que instalaram uma cédula terrorista na região. "Nunca tive tanto medo na minha vida”, lembra Coutinho, em entrevista para a Folha de S. Paulo. “Fui ameaçado e pensei que fosse morrer. Passei anos tendo pesadelos."
"Alguém uma vez falou que eu tive sorte por meu filme ter sido interrompido", continua. "Mas tente viver com um fantasma desses por 17 anos. Não voltei por motivos estéticos, mas porque fui castrado."
Adaptando o veículo à novos caminhos, o jovem Eduardo Coutinho abandonou a ficção e entrou no documentário, retornando após 20 anos para projetar as poucas cenas 'perdidas' aos atores da época, que não eram profissionais.
O diretor recuperou os negativos, salvos pelo produtor Zelito Viana, pelo assistente de direção Vladimir Carvalho e até “por um comerciante de João Pessoa".
No elenco se encontrava Elizabeth Teixeira, mulher de João Pedro, que fez seu próprio papel. A viúva não estava na sessão improvisada ao ar livre no começo do filme. O documentarista então parte para encontrá-la, trilhando o que aconteceu a Elizabeth duas décadas depois.
Coutinho chegou ao paradeiro da viúva do camponês, que continuou a ostentar a bandeira do movimento das Ligas Camponesas, através do filho mais velho, o jornalista Abraão, que queria dinheiro. "Eu ofereci 10% da bilheteria, mas não adiantou, então levei grana viva. Abraão teria ganhado muito mais se tivesse aceitado minha proposta".
Quando retomou o projeto, em 1981, o cineasta passou três anos trabalhando sem folga na Rede Globo, no programa jornalístico Globo Repórter. “Fiz o filme durante as minhas férias", revela.
Aproveitando a carteira assinada na emissora, o documentarista usou os equipamentos da própria Globo de forma clandestina, pagando “um por fora" para os técnicos e montando o filme na ilha de edição do Globo Repórter.
"Foi um prazer indescritível", brinca. "Mas sempre fui honesto. Ninguém gostava de viajar comigo porque eu não dava dinheiro para o uísque. Eu contava cada tostão das diárias."
'CABRA' RESTAURADO
A cópia restaurada de Cabra Marcado para Morrer foi exibida pela primeira vez no final de março, como parte da programação da 17ª edição do tradicional festival É Tudo Verdade, em São Paulo.
O evento também homenageou o cineasta, exibindo a retrospectiva 'Coutinho – O Caminho até ‘Cabra’', com diversos episódios do Globo Repórter, e sua filmografia mais recente, como As Canções (2011), Jogo de Cena (2007), Peões e Edifício Master (ambos de 2002).
Cabra Marcado para Morrer foi o mais recente trabalho restaurado pela Cinemateca Brasileira. Atualmente, o Laboratório de Restauração da entidade está digitalizando a filmografia de Joaquim Pedro de Andrade (entre eles, o clássico de 1969, Macunaíma).
Outro projeto é a restauração do acervo Glauber Rocha (1939-1981), que inclui os longas Barravento (1961) e A Idade da Terra (1980) seu primeiro e último filmes, respectivamente.
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