CULTURA
Ícones da MPB falam sobre Brasil, Tropicalismo e a amizade entre os dois
Exclusivo: ícones da MPB falam sobre Brasil, Tropicalismo e a amizade entre os dois.
Publicado em 08/11/2015 às 8:00
O show dos 50 anos de carreira de Caetano Veloso e Gilberto Gil chega nesta sexta-feira ao Recife. A comemoração toma como referência músicas gravadas em 1965: 'De Manhã', de Caetano, e 'Eu Vim da Bahia', de Gil, que estão no roteiro. São anteriores ao Tropicalismo, movimento iniciado em 1967, quando 'Alegria, Alegria' (Caetano) e 'Domingo no Parque' (Gil) deram dimensão nacional aos seus autores.
Caetano e Gil falaram com exclusividade ao JORNAL DA PARAÍBA sobre três temas que lhes sugeri: os impasses brasileiros, a relação entre os dois e o Tropicalismo visto de longe. A partir de uma frase de Caetano (“Quando grito, cada vez que se arma uma celebração retrospectiva do Tropicalismo, ‘a luta continua’, é isso que estou querendo dizer”), pergunto como ele vê o Tropicalismo de longe:
“Ali, eu estava respondendo a um autor que tinha acusado o Tropicalismo de pecados que ele não cometera. Para mim, a luta continua sempre. É uma luta contra o mundo, contra nós mesmos, contra o medo de tentar a grandeza. Quando canto ‘Tropicália’ e Gil canta ‘Marginália II’, reaprendo a canção que deu nome ao movimento, observo sua estranha atualidade. O pessimismo da letra de ‘Marginália II’ produz expressões de interrogação no rosto de espectadores, interrogação sobre o presente, sobre o tempo que vai do Tropicalismo a nossos dias. ‘Em suas veias corre muito pouco sangue’, ‘E no joelho uma criança sorridente, feia e morta estende a mão’, ‘Aqui é o fim do mundo’, ‘Aqui o Terceiro Mundo pede a bênção e vai dormir’ são frases que contam o Brasil de 1967 e fazem pensar sobre como agora parece que a realidade mal roça a possibilidade de superá-las”.
Gil confessa que não consegue distanciamento quando o tema é o Tropicalismo: “Difícil vê-lo de longe. Ainda que eu entenda que você está se referindo ao tempo que passou já que tudo tem que passar!. Sim, o Tropicalismo passou no tempo, mas, como eu ainda não passei no tempo, ou seja, como meu tempo ainda não passou, o Tropicalismo também ainda não passou em mim!. E, se o Tropicalismo continha, em seu tempo jovem, um significado de luta, como diz Caetano, para mim também, em quem o Tropicalismo ainda não passou, a luta continua!”
A passagem do tempo é aliada de todos se pensarmos nas belezas do show. Dá significados muito fortes às canções. O que temos no palco são dois homens de 73 anos, revendo o que fizeram em cinco décadas. Em 'Domingo no Parque' ou 'Expresso 2222', de Gil, 'Tropicália' ou 'Sampa', de Caetano. Outra beleza é identificarmos a relação das canções com o momento em que foram escritas. Nos comentários sobre o exílio ('Nine Out of Ten', de Caetano; 'Back in Bahia', de Gil), na lembrança da prisão ('Terra', de Caetano) ou no retrato do Brasil à época do Tropicalismo ('Marginália II', de Gil, letra de Torquato Neto).
Belo também é o modo como o repertório foi montado. O que pode ser lido nas entrelinhas. A conversa que vai se construindo no palco ornamentado com nossas bandeiras estaduais. Caetano e Gil dialogam conosco e não só entre eles. Os artistas permanecem o tempo todo em cena, mesmo quando somente um está tocando e cantando. Aí, um atua, o outro contempla. O silêncio se traduz como reverência, admiração profunda, também amor e amizade.
Tudo no show tem a ver com uma história de grande cumplicidade que começou na Salvador da primeira metade da década de 1960, no dia em que Caetano e Gil se viram pela primeira vez. O encontro foi na rua Chile, no centro da cidade, perto da loja de calçados "O Adamastor", que pertencia ao pai de Glauber Rocha. Essa história, contada hoje através de canções, é talvez a maior beleza do duo acústico.
Recorro a uma definição de Gil (que está em Todas as Letras) para pedir que ele fale da relação com Caetano: “Ninguém se mete no meio da gente. Nada se interpõe a nós dois. Há uma aliança mesmo, como se houvera sido feita num plano anterior e posterior a nós próprios”.
E vem a resposta: “Essa foi uma fala idealista, baseada num forte sentimento de parelha que ainda trago até hoje em relação a um certo destino comum (os gêmeos espirituais, na expressão de Walter Smetak) e que tem sido sempre desafiado pelas nossas histórias pessoais em parte necessariamente dissonantes. Outro dia, uma jornalista nos entrevistou a propósito deste nosso encontro de agora: ‘e o amor de vocês dois, como está?’. Eu disse que vinha crescendo, se esclarecendo, se tornando cristalino. ‘E pra você, Caetano?’, ela insistiu. Ele simplesmente respondeu: É!”
Caetano também cita Smetak: “O próprio show, que começou sem que eu entendesse suas luzes, reafirma essa definição de Gil. A princípio titubeante, quem o via ia revelando nele uma grandeza que está mais no laço entre mim e Gil do que nas eventuais excelências que cada um possa apresentar (sendo que as de Gil, muito maiores em número e intensidade, justificariam sozinhas a importância do espetáculo). Essa sensação de que somos gêmeos transcendentais vem desde nosso primeiro encontro”.
Por fim, o Brasil, sem o qual não teríamos Caetano e Gil como eles são. Menciono Caetano (em Verdade Tropical, ele refere-se ao país utópico trans-histórico que temos o dever de construir e que vive em nós) para pedir que Gil faça uma reflexão sobre os impasses brasileiros. Didatismo e lucidez histórica guiam a resposta:
“O impasse brasileiro resulta da acumulação de múltiplos grandes e pequenos impasses sobrepostos ao longo da sua história de mais de 500 anos de nação e/ou estado-nação. Já de começo, as capitanias hereditárias (questão da terra); a tentativa de sujeição do índio seguida do seu quase-extermínio e o abuso da força de trabalho do africano pela sua escravização e os subprodutos dessa forma abjeta de produzir e civilizar (questão da formação do povo); a exploração do pau-brasil e outros extrativismos predatórios e rudimentares, entre eles a cultura da cana de açúcar (questão da economia); em seguida, a transferência improvisada e provisória da sede do reino português para o Brasil, mera rota de escape de uma corte em fuga das escaramuças de uma Europa em convulsão (questão político-institucional); o arranjo fraco da proclamação da independência, o arranjo insuficiente da abolição da escravidão, o arranjo confuso da proclamação da República, que se seguiram (questão da constituição do estado-nação e do projeto nacional). E tantos outros passos hesitantes a se sobreporem e a criarem esses tais nossos impasses brasileiros, desde cedo. Pra falar só dos tempos iniciais e da média-trejetória. Se formos pensar na época moderna, muitos outros mais. E mais outros tantos já agora, na pós-modernidade!”
Antes de responder, Caetano lembra que o país utópico trans-histórico aparece numa passagem sobre Jorge Ben: “Os impasses brasileiros de sempre estão na superfície hoje, sem que isso indique que estamos mais perto de solucioná-los. Sinto agora, como em alguns outros momentos ao longo das décadas, que persistiremos no atraso. O país utópico trans-histórico parece apagado dentro de nós. Em mim, nunca de todo”.
O show faz pensar no país utópico trans-histórico. O “aqui é o fim do mundo”, de Gil, e o “eu organizo o movimento”, de Caetano, parecem dizer mais do que em 1967/68. Juntam o país convulsionado de ontem ao de hoje. Confirmam a opinião, de Caetano, de que o cancioneiro popular do Brasil fala muito profundamente do nosso destino como nação.
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