CULTURA
Jorge Mautner em tom maior
Com som remasterizado e encartes originais, três primeiros discos do músico carioca ressurgem para mostrar seu valor.
Publicado em 16/02/2014 às 13:00 | Atualizado em 23/06/2023 às 12:25
Faixa do disco de estreia de Jorge Mautner, Para Iluminar a Cidade (1972), 'Sapo cururu' guarda uma estreita relação entre o artista carioca e a Paraíba. "O ‘Sapo cururu’ é daí da Paraíba”, revela Mautner, por telefone. “Quem me mostrou (a música) foi a primeira esposa do (ator) Gianfrancesco Guarnieri, a (jornalista) Cecília Guarnieri. Ela ouviu na Paraíba, no meio da cultura popular, e me mostrou. Fomos pesquisar quem era o autor e descobrimos que não tinha, que era de autor desconhecido”.
‘Sapo cururu’, uma fábula nacionalista de pouco mais de seis minutos, entrou no registro do show ‘Para Iluminar a Cidade’, apresentado entre nos dias 27 e 30 de abril de 1972 no Teatro Opinião (RJ) e que se tornaria o primeiro disco da carreira de Mautner. O álbum acaba de ser reeditado em CD junto com seus dois discos seguintes: o seminal Jorge Mautner (1974) e Mil e Uma Noites de Bagdá (1976).
Os três saem embalados na caixa Três Tons, série que a Universal Music vem colocando nas lojas com muito zelo. Os CDs receberam ótima remasterização e os encartes reproduzem a arte original dos LPs. Como de praxe, a caixa ainda traz um texto revisionista sobre os álbuns.
O citado Para Iluminar a Cidade, por exemplo, ainda vem com três faixas bônus: ‘Relaxa, meu bem, relaxa’, ‘Planeta dos macacos’ e ‘Rock da barata’. Tanto a primeira (parceria dele com o inseparável Nelson Jacobina), quanto a segunda (de Mautner e Jards Macalé), foram extraídos do raríssimo compacto lançado em 1973. ‘Rock da barata’, em registro ao vivo, saiu do coletivo Phono 73 - O Canto de Um Povo, também lançado naquele ano.
Com repertório total de 12 faixas, o disco ao vivo passa à limpo a produção de Mautner até ali. Cantor, compositor, instrumentista, escritor, ator e diretor, ele começou compor suas primeiras músicas em 1958 (como a célebre ‘Vampiro’ e ‘Olhar bestial’, inspirada em Maysa) e a gravar seus primeiros compactos em 1965, mas só conseguiu ingressar numa carreira fonográfica para valer em 1972, assim mesmo com certa desconfiança das gravadoras.
“É preciso que também se saiba que, mesmo agora, depois de tantos Tropicalismos, não foi fácil colocar Jorge no disco: ‘Ele é muito bom’, diziam os chefes, ‘mas não há onde colocá-lo, o público não vai saber como classificá-lo. E isso não vende’.
Será?”. A provocação de Caetano Veloso, impressa no encarte do LP de 1972 dá ideia da imagem que a indústria fazia da arte de Mautner.
O disco acabou sendo lançado pelo selo ‘Pirata’ da então Phonogram (hoje Universal Music). Não era bem o “pirata”, como conhecemos hoje, mas edições baratas, gravadas ao vivo, com capas em duas cores e vendidas ao preço máximo de 14 cruzeiros – numa época em que um LP custava mais que o dobro. “As lojas recusaram esse disco. Só Recife não recusou.
Em Recife foram vendidas sete mil cópias”, comemora.
“Para você ter uma ideia, eu cheguei a mostrar ‘Maracatu atômico’ para um diretor (artístico de uma gravadora), que eu não vou dizer o nome, e ele me disse que não era popular.
Depois a música foi um estouro com (Gilberto) Gil, e depois com Chico Science. Era desse jeito”, comenta.
‘Maracatu atômico’, parceria de Mautner com o saudoso guitarrista Nelson Jacobina, o “Carneiro”, como é creditado em Para Iluminar a Cidade, é o carro-chefe do álbum Jorge Mautner de 1972. É o disco que traz a capa assinada pelo tropicalista Rogério Duarte e repertório de pérolas: ‘Guzzy muzzy’, que recentemente frequentou os shows da Orquestra Imperial e da cantora Sílvia Machete; 'Ginga da mandinga’, que Wanderléia regravou em 1975 e ‘Pipoca à meia-noite’, que Lulu Santos emplacou em Anti Ciclone Tropical (1996).
Além de assinar a direção artística do disco, Gilberto Gil também regravaria ‘O relógio quebrou’ (em Temporada de Verão, 1974), ‘Herói das estrelas’ (em Gilberto Gil ao Vivo, também de 1974) e a citada ‘Maracatu atômico’, lançada em compacto. “Gil nos deu muita liberdade no estúdio”, confirma Mautner sobre a produção do baiano.
Dois anos depois, Mautner quis fazer um disco “para tocar no rádio”, como disse à época, já que seus discos anteriores eram completamente ignorados pelas emissoras.
Para isso, os arranjos não mais ficariam com Jacobina, mas sim com o tarimbado Perinho Albuquerque, arranjador de discos como Drama (1972), de Bethânia, Araçá Azul (1972), de Caetano, e Cantar, de Gal, que faria com que o disco de Mautner soasse mais palatável às rádios.
O resultado está em Mil e Uma Noites de Bagdá, o terceiro disco do pacote, feito sob a pressão para emplacar.
Em seu repertório de 12 faixas, Mautner vai de temas orientais (‘Rainha do Egito’, ‘Mil e uma noites de bagdá’) ao candomblé (‘Homenagem a Oxalá’), passando por baladas românticas (‘Aeroplanos’) e sambas bem tradicionais (‘Samba do jambo’, ‘Samba dos meses’). Dos três, é o disco mais comum. E menos inspirado.
EXILADO
Se por um lado Mautner era “filho do holocausto”, por outro era visto como bastardo pelo Regime Militar. “Fui enquadrado na Lei de Segurança Nacional”, explica.
Seus livros Deus da Chuva e da Morte (1962), Kaos (1963) e Narciso em Tarde Cinza (1965) e os compactos lançados até então (como Radioatividade Não, Não, Não, de 1966) convenceram os militares de que o músico carioca, filho de pais austríacos judeus que fugiram da perseguição nazista da Segunda Guerra, era um subversivo.
Exilado nos Estados Unidos a partir de 1965, ele estava longe quando a Tropicália injetava conceitos vanguardistas na cabeça do público jovem brasileiro, mas isso não impediu que seus livros e músicas chegassem até os tropicalistas através de figuras como Gláuber Rocha, Rogério Duarte e Agripino de Paula e o grupo Os Mutantes.
No exílio, ele saía dos Estados Unidos para visitar Gilberto Gil e Caetano Veloso em Londres, igualmente exilados. Lá, estreitaram laços a ponto dos baianos figurarem no filme experimental O Demiurgo, inédito no mercado, mas disponível, na íntegra, no portal www.panfletosdanovaera.com.br.
Os artistas só voltariam ao Brasil no início de 1972, segundo Jorge, a pedido das Forças Armadas, junto com Gil e Caetano, “senão a ‘linha dura’ iria se perpetuar. Afinal, o povo só acreditava na força do cantor popular”, acrescenta. Foi quando deu início à sua discografia.
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