CULTURA
Modernismo nordestino
Pintor pernambucano Cícero Dias e sua trajetória na Europa é tema de documentário do paraibano Vladimir Carvalho.
Publicado em 12/04/2014 às 6:00 | Atualizado em 19/01/2024 às 15:12
No livro Eu Vi o Mundo (Cosac & Naify, 2012), o pintor pernambucano Cícero Dias (1907-2003) relatava, dentre outras reminiscências, o testemunho da intriga que Picasso (1881-1973) tinha de colocar ou não cores na sua Guernica.
Um dos pintores mais importantes do Século 20 no Brasil, Cícero é o tema de um documentário do paraibano Vladimir Carvalho, que ainda está no processo de decantação da sua nova produção.
“Estou fazendo de forma intermitente, atípica. É uma produção que classifico como independente”, explica o cineasta radicado em Brasília, que está de passagem pelo Nordeste para prestigiar o Festival de Cinema dos Países de Língua Portuguesa (Cineport), em João Pessoa, e colhendo imagens e depoimentos sobre o artista no Estado vizinho.
Vladimir não esconde o fascínio por Cícero Dias, um modernista que viveu a maior parte de sua carreira na Europa, mas que foi “indelevelmente marcado por suas origens nordestinas”.
O documentarista explica que o filme começou a tomar corpo quando estava na França, em 2003 (mesmo ano da morte do pintor), onde ele foi visitar uma retrospectiva das obras do pernambucano. Na época, o cineasta estava produzindo O Engenho de Zé Lins e observou um texto do escritor de Menino de Engenho ao lado de um dos quadros da mostra. Além de filmar essa passagem, Vladimir aproveitou para registrar toda a exposição.
O paraibano também conheceu o atelier do pintor na França e colheu depoimentos da viúva de Cícero, Raymonde, e da filha do artista, Sylvia, afilhada de Picasso.
“Cheguei ao Brasil com esse material, mas estava com o foco em Zé Lins”, relembra. “Mostrei ao meu irmão (o também cineasta Walter Carvalho) e ele me disse que, junto com João Moreira Salles, anos antes, estavam no mesmo atelier e pegaram uma entrevista inédita com o próprio Cícero Dias”.
Foi na segunda metade dos anos 1930 que Cícero Dias fixou residência em um dos berços da cultura, a França, onde conheceu o surrealismo e o abstracionismo. Mas como bom brasileiro, ele poderia abandonar o Nordeste, mas o Nordeste não deixava-o. “O seu abstracionismo traz a luz do Nordeste.
Ele é o capítulo brasileiro do surrealismo”, aponta Vladimir Carvalho. “Em 1948, quando ele voltou com um exposição em pernambuco foi um choque cultural. Ali começava o modernismo no Nordeste”, sentencia. “Ele não se deixou transplantar. Ele era Cícero Dias até debaixo d‘água ou debaixo da Torre Eiffel”.
Dentre os feitos da figura de Cícero Dias que Vladimir Carvalho enumera, um foi quando ele serviu de ‘mula’ para o amigo e poeta francês Paul Éluard (1895-1952), carregando escondido o poema Liberté para chegar a Lisboa, de onde a embaixada britânica despachou para ser impresso em panfletos e jogado de aviões ingleses sobre a Europa ocupada por tropas nazistas, em 1943. “Ele foi instintivo com o mundo a sua volta”, afirma o documentarista.
No final dos anos 1940 – época de maior atividade de uma ‘ponte-aérea’ artística entre Europa e Brasil –, Cícero Dias se interessou por murais e realizou importantes exposições como a Bienal de Veneza, ocorrida em 1950.
No ano 2000, ele inaugurou no Recife Antigo, local onde nasceu a cidade, à beira do Cais do Porto, o famoso Marco Zero, a praça que foi projetada por ele mesmo.
O pernambucano morreu aos 95 anos, em 28 de janeiro de 2003, em sua residência na rue Long Champ, Paris. O pintor se encontra sepultado no cemitério Montparnasse, no centro parisiense.
No processo de produção do documentário, Vladimir ainda está colhendo depoimentos de especialistas, familiares e dos que conviveram com o artista. “Pode ser que leve mais um ano”, calcula.
Mas o cineasta confessa que gostaria de “se dar de presente” este filme ainda em 2015, ano em que comemora seus 80 anos de vida.
LIGAS CAMPONESAS
Outro projeto que começa a se formar em paralelo é uma demanda colocada por amigos de Vladimir, que o convidaram para contar uma história obscura da Paraíba: a saga das ligas camponesas e a Reforma Agrária no Estado. “Estamos estudando a ideia geral ainda, tateando o terreno”, conta.
Vladimir foi assistente de direção de um dos mais viscerais documentários que tocam o tema, Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho (1933-2014), mas o filme abrange apenas a figura de João Pedro Teixeira, líder camponês paraibano assassinado em 1962.
Um dos casos a ser explorados é a Resistência Camponesa em Mari, na Zona da Mata paraibana, ocorrida em 1964, quando homens do campo foram assassinados durante abordagem policial a mando de latifundiários da região.
Na ocasião, Vladimir Carvalho conta que ele e Paulo Pontes estavam presentes no enterro dos onze mortos.
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