CULTURA
"Não há, em literatura, gênero fácil", diz Rinaldo de Fernandes
Escritor maranhense radicado na Paraíba lança coletânea que promove a convocação de todos os seus contos.
Publicado em 10/01/2016 às 14:00
“Não há, em literatura, gênero fácil. Já houve contos, como o caso de A Morta, do livro O Perfume de Roberta, que passei oito anos para dar a sua forma definitiva. Oito anos para escrever um conto! E o meu romance Rita no Pomar, que foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, escrevi em 10 meses”.
O testemunho do ofício de Rinaldo de Fernandes mostra um pouco da sua dedicação debruçada no universo das letras. Uma boa parte dela poderá ser conferida em Contos Reunidos (Novo Século, 400 páginas, R$ 45,00), uma compilação que convoca as coletâneas do maranhense radicado na Paraíba: o já citado O Perfume de Roberta (Garamond, 2005), O Professor de Piano (7Letras, 2010), Confidências de um Amante Quase Idiota (7Letras, 2012) e O Livro dos 1001 Microcontos (textos escolhidos) – além de estudos críticos sobre os escritos.
O calhamaço começará a ser distribuído às livrarias ainda este mês. Segundo Rinaldo, o lançamento nacional possivelmente será durante o Encontro da Nova Consciência, que acontecerá em Campina Grande durante o Carnaval.
“Os contistas, em certo momento de sua trajetória, costumam reunir num único volume os seus contos”, justifica. “Rubem Fonseca, Moacyr Scliar, para ficar em dois nomes, tiveram os seus contos reunidos num único livro. Isso facilita a vida do leitor”.
Por falar em Scliar (1937-2011), o escritor gaúcho está na seção de estudos críticos da coletânea, em que há prefácios e posfácios de conterrâneos do autor de O Carnaval dos Animais, como Regina Zilberman e Luís Augusto Fischer.
“Há resenhas publicadas em suplementos literários importantes, como o antigo Ideias, do Jornal do Brasil, e o Rascunho, de Curitiba (PR), hoje considerado o mais importante jornal de literatura do país. Há artigos publicados em portais de literatura renomados, como o Cronópios, e artigos originados de pesquisas acadêmicas. Um deles integrou uma tese de doutorado sobre meus contos. Um outro foi apresentado em Santa Catarina (RS), no Encontro Nacional de Estudantes de Letras. É um material muito valioso sobre os meus contos”.
Efeito sobre o leitor
Além de ser estudado, Rinaldo de Fernandes foi nomeado por Regina Zilberman – uma das maiores ensaístas na área de literatura que assinou o posfácio de O Professor de Piano – como ‘mestre do conto’.
“[Recebo o título] com muita felicidade e um profundo senso de responsabilidade”, frisa. “Ela percebeu uma unidade, uma coerência em todos os contos de O Professor de Piano, os quais, segundo ela disse no posfácio, ‘estão assinalados por grande condensação dramática e impacto narrativo’. Disse ainda, entre outras coisas, que meus contos exercem ‘um forte efeito sobre o leitor’, que eles tematizam questões centrais da sociedade atual, como a violência”.
Para Rinaldo de Fernandes, a literatura exige sempre um mergulho profundo na linguagem. “Não há literatura sem uma profunda consciência da palavra, das possibilidades desta. O escritor precisa esgotar todas as possibilidades da linguagem”, explica. “Normalmente, quando escrevo um conto, sou tomado pelo ambiente geral da narrativa – o espaço do conto me toma de forma avassaladora, como se eu estivesse num transe. E aí, eu passo a imaginar o personagem e sua força”.
O conto na perspectiva do contista
O conto deve ter um poder de sugestão, não importa a sua dimensão, é obra da síntese, do implícito. O contista não pode 'explicar' a situação narrada para o seu leitor – mas apresentá-la, desenvolvê-la, e deixar que o leitor, no final, tire as suas conclusões. Um bom personagem vivendo uma situação que cause forte impressão no leitor. E que o leitor visualize as cenas do conto como se estivesse dentro delas.
Sobre o escritor
Rinaldo de Fernandes é contista premiado, romancista, ensaísta e professor universitário, com doutorado em Letras pela Unicamp. Autor dos romances 'Rita no Pomar' e 'Romeu na Estrada', é também muito conhecido pelas antologias de contos e de ensaios que organizou, como 'Chico Buarque do Brasil', 'Contos Cruéis' e 'Capitu Mandou Flores'.
Confira dois minicontos do autor paraibano
O PINTOR E A DANÇA
Preso no escritório, entre árvores de arquivos, eu nunca entendi o fato de o meu vizinho, que é pintor, viver também atirado em danças. Quando, à noite, curvo de cansaço, venho do trabalho, vejo-o com a esposa plantando ritmos no alpendre. Às vezes, a dança dos dois derrama-se até a praça em frente, agita-se entre as mangueiras. A grama, nos canteiros, magoada pela valsa dos seus pés.
Visitando-o certa vez, disse-me que, poeta, os passos da dança eram recolhidos na agenda, em forma de versos. E fez-me entrar no ateliê. Ele conseguira pintar o perfume da dança na papoula que se abria no seu mais recente quadro.
CARPINTEIRA
Transborda o berço, o sono do meu filho no quarto. Os pingos no metal da pia – marteladas no meu crânio. Vou à cozinha, aperto bem a torneira. Antigamente, tudo limpo, polido. Agora, o pó cobrindo a geladeira. Na sala, despenco o corpo na poltrona. A TV fora do ar, meus dedos tamborilam no nada. Minha vida, a esse tempo, embrulhada em quatro paredes. Olho-me no grande espelho. Em carne viva, a mordida que os dias me arrancaram.
Olho a cinza de cigarro que, antes de sair, meu marido quebrou no tapete. Alta madrugada, bêbado, ele chega atropelando o sono do menino e o meu. Em nossas discussões, borrifa-me o rosto com o rum do ódio. Mas, carpinteira, construo um barco com as tranças nuas de cebola. É nele que, próximo temporal, ganharei as águas que, eu sei, sempre estouram da biqueira.
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