CULTURA
O Deus da Rússia
Autora de 'Tolstói - A Biografia' fala em entrevista exclusiva sobre o desafio de contar como foi a vida e a obra do romancista russo.
Publicado em 18/08/2013 às 6:00 | Atualizado em 14/04/2023 às 16:10
Quando Liev Tolstói (1828-1910) morreu, em uma estação ferroviária no vilarejo de Astápovo, a 300 quilômetros de Moscou, um trem de 800 lugares partiu da capital russa rumo a Iasnáia Poliana, a lendária propriedade rural na qual o escritor viveu 70 dos seus 82 anos.
Em seu diário, a viúva Sônia Behrs (1844-1919) registrou a chegada de diversos jornalistas, de um grupo de 52 moças de São Petersburgo e até de um muçulmano do Cáucaso que trazia uma coroa de flores para adornar o túmulo erguido em uma ravina onde, segundo o irmão de Tolstói, estava escondido o segredo de toda a felicidade humana. A mansão ancestral de Iasnáia Poliana virava um local de peregrinação. Tólstoi era venerado com um santo.
Tentar compreender a dimensão sobre-humana do criador de Guerra e Paz (1869) e Anna Kariênina (1877) foi o grande desafio com que se deparou a inglesa Rosamund Bartlett, cujo monumental trabalho sobre o romancista acaba de ser publicado no Brasil pela Globo Livros.
Em entrevista exclusiva ao JORNAL DA PARAÍBA, a autora de Tolstói – A Biografia (Biblioteca Azul, 640 páginas, R$ 69,90) falou sobre a missão de contar uma vida que foi o modelo arquetípico de um país onde a figura de um ermitão barbudo chegou a ser mais importante que a de um tsar.
“Eu tive a sorte de aprender russo na escola, quando tinha 14 anos”, relata Bartlett, lembrando-se de quando surgiu seu interesse pela cultura que lhe rendeu uma cátedra na Universidade de Oxford, onde fez seu doutorado, e a biografia de outro escritor, Antón Tchekhov (1860-1904).
“Meu avô fez parte de um grupo idealista de Cambridge que, nos anos 1930, foi atraído pela antiga União Soviética. Ele tornou-se membro do Partido Comunista, foi a Moscou várias vezes e manteve seu amor pela cultura russa mesmo depois que se desiludiu politicamente. Eu fui estudar russo na universidade e a literatura começou a me interessar enquanto eu estava morando em Leningrado, como parte da minha graduação”.
Publicado na Inglaterra em 2010, após três anos de pesquisa e um ano e meio de escrita, a biografia inclui, em sua edição brasileira, uma cronologia do biografado, as árvores genealógicas da família de Tolstói e de sua esposa, vasto caderno de imagens, sugestões de bibliografia e índice remissivo. Em termos de conteúdo, lança um competente olhar sobre o Tolstói educador, fundador de escolas e do tolstoísmo, uma corrente de pensamento que pregava ideais sufocados pelo império do tsar Nicolau II (1894-1917), pela Igreja Ortodoxa (de onde foi excomungado) e por regimes subsequentes.
“O tolstoísmo, hoje, é quase inexistente na Rússia”, revela Bartlett. “Um movimento que pregava o pacifismo, o vegetarianismo, a abstemia, a abolição da propriedade privada, a importância da natureza e de ganhar o pão de cada dia com o suor do seu rosto era algo à frente de seu tempo na década de 1880, mas não resistiu à corrupta e ultra-consumista Rússia de hoje, apesar de ter muito a oferecer àqueles que veem muita pobreza ao redor e não pensam no capitalismo como uma resposta. Evidentemente, isso não ajudou o legado espiritual de Tolstói, que foi extremamente influente na década de 1920, mas progressivamente censurado pelo governo soviético de Stalin (1879-1953)”.
REVIRANDO NA COVA
Segundo a autora, após a Revolução Russa, Tolstói passou a ser encarado de forma “unidimensional”, como o escritor patriota de obras como Guerra e Paz, que narra o triunfo da nação diante do exército de Napoleão durante a campanha no território eurasiático. Para ela, o homem que, prestes a completar 60 anos, em 1887, foi retratado arando o campo, entre dois cavalos brancos, estaria se revirando na cova diante do “nacionalismo cru”, do “obscurantismo religioso” e da “agressiva discriminação contra minorias” que, em suas palavras, constituem a Rússia moderna.
“Deve-se salientar que o interesse de Tolstói pelas classes inferiores da Rússia foi restrita ao campesinato”, sublinha. “Ele não demonstrou muito interesse, por exemplo, pela burguesia, que era uma classe baixa no segregado sistema de castas da Rússia e é descrita com desprezo nas páginas de seus romances.
Os camponeses podiam também gostar de dinheiro, mas como um ‘nobre arrependido’, que estava perfeitamente ciente de sua classe ser cúmplice da moral iníqua da instituição de servidão, Tolstói tendia a idealizá-los. Ele viveu entre os camponeses, nas profundezas da Rússia rural, durante a maior parte de sua vida, abrindo escolas para ensiná-los a ler e escrever e, mais tarde, vestindo-se como eles e dispensando seus servos. Como homem de grande intelecto que sujeitava tudo ao escrutínio racional, ele invejava a simplicidade do modo de vida e do que ele achava que eram os instintos morais natos e inconscientes dos camponeses, que não haviam sido corrompidos pela ‘civilização’ ocidental”.
O ESCRITO COMPETITIVO E EGOÍSTA
Um sujeito “hipersensível”, que adorava cavalgar mas cogitava abandonar a montaria porque até mesmo andar a cavalo era uma “atividade autoindulgente” ante os milhares de camponeses que, ao seu redor, morriam de fome. Que, mesmo após sua excomunhão, orava de pés descalços, em pleno inverno russo, nos bosques de Iásnaia Poliana. As descrições de um Tolstói quase que beatificado são contrapostas, no livro, pela apresentação de um intelectual competitivo, que não admitia fazer parte de nenhum grupo literário no qual ele não fosse o centro das atenções.
“Era mais fácil para ele com escritores estrangeiros, que não representavam uma ‘ameaça’, embora sua admiração por eles permanecesse no nível da página escrita”, explica Bartlett. “Há uma exceção: o hoje quase esquecido Berthold Auerbach (1812-1882), a quem ele idolatrava enquanto estava envolvido com a educação. Tolstói só foi ao exterior duas vezes, quando ainda era jovem, muito antes de alcançar fama internacional com seus romances. Ele só teve a oportunidade de conhecer escritores estrangeiros como Rainer Maria Rilke (1875-1926) e George Bernard Shaw (1856-1950) pessoalmente quando eles foram visitá-lo ou escreveram para ele”.
Na esfera privada, o pai de 13 filhos (dos quais oito sobreviveram a males prematuros) ganhou contornos de marido inapto, de atitudes pouco respeitáveis em relação ao sexo feminino e cujo ego o fazia dar as mãos aos pobres mas virar as costas às necessidades de sua família. Um dos méritos da biografia de Bartlett é restaurar a reputação de Sônia Behrs que, junto com o braço direito de Tolstói, Vladimir Tchertkóv (1854-1936), foram as figuras mais controversas dos muitos capítulos já escritos sobre a trajetória biográfica de Tolstói.
“Sônia Behrs certamente sofreu uma série de abusos, tanto no final de sua vida quanto depois dela, daqueles fanáticos seguidores do marido que se ressentiam de suas tentativas de preservar seu casamento e o estilo de vida confortável da família”, defende Bartlett, que se refere a Behrs como “a mulher que aturou Tolstói por 48 anos". “Ela era uma mulher notável e teve um papel importantíssimo em prover a estabilidade doméstica de que Tolstói precisava para escrever seus romances. Mas ela tinha suas próprias falhas, e eu acho que minha contribuição foi dispensar uma significativa atenção a ela em minha biografia, retratando-a de uma maneira simpática mas objetiva”.
TRADUZINDO 'KARIÊNINA'
Behrs foi também a primeira leitora e copista do caudaloso Guerra e Paz, além de ter sido um possível modelo para a personagem Kitty, de Anna Kariênina, obra que Bartlett atualmente traduz sob encomenda da Oxford University Press, mesma editora que publicou sua biografia sobre Tchekhov em 2004. “A tradução clássica inglesa de Aymler (1858-1938) e Louise Maude (1855-1939) de Anna Kariênina tem sido impressa desde 1918, e a editora decidiu que já era hora de comissionar uma nova tradução. Você realmente começa a conhecer um escritor quando traduz os seus trabalhos. Eu encontrei inspiração para minhas biografias na experiência íntima da tradução, e escrever as biografias foi igualmente útil quando se tratava de traduzir”.
Sobre a influência literária de Tólstoi entre os nossos contemporâneos, Bartlett destaca os nomes do americano Jonathan Franzen (As Correções, Liberdade) e do indiano Vikran Seth (inédito no Brasil) como representantes de uma escrita na qual paira a sombra de Tolstói. “Franzen e Seth são ficcionistas claramente interessados na escrita em escala épica sobre as famílias através das gerações. Se qualquer escritor contemporâneo pode ser seriamente comparado a Tolstói, porém, já é outra questão. Eu não estou muito certa de que a maneira de Tolstói escrever esteja experimentando um surto especial de popularidade hoje. Naturalmente, ele foi um dos primeiros autores a quem os futuristas queriam derrubar da nave da modernidade, um século atrás, mas, na década de 1930, seu estilo de escrita foi escolhido como modelo para o realismo socialista, uma ideologia altamente conservadora, artisticamente falando”.
Para Bartlett, a suposta ascensão do interesse pelo estilo tolstoiano pode denotar, na verdade, o retorno dos valores conservadores do romance como gênero narrativo. “Evidentemente, Tolstói será uma inspiração perene para os novos escritores devido à sua incomparável habilidade de trazer personagens à vida. Ao mesmo tempo, sua varredura épica nos leva das esferas privadas das casas de veraneio e salões de sociedade até os campos de batalha da história de sua nação. Quem não gostaria de ser capaz de escrever assim?”
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