CULTURA
O Eu e a poesia de todos os egos
Autor de dois livros, neto de Augusto dos Anjos fala das influências do avô poeta e comenta a única obra do 'Paraibano do Século'.
Publicado em 06/06/2012 às 6:00
Foi em Nova Petrópolis, na Serra Gaúcha, que localizamos Ricardo, neto de Augusto dos Anjos.
Nascido em Niterói (RJ), em 1938, filho do primogênito do poeta, Guilherme dos Anjos, Ricardo carrega o patrimônio do avô no sobrenome e no ofício que escolheu para si.
Jornalista e redator de publicidade aposentado ("mas não inativo", como gosta de frisar), é autor de dois livros - Após a Tragédia (1962) e Agrolírica (1974) - e foi eleito o porta-voz oficial da família quando o assunto é a vida e a obra do seu mais famoso membro.
"Quem apresentou Augusto à família foi meu pai, Guilherme", conta Ricardo, que já ministrou palestras sobre o 'poetavô' (como chama carinhosamente o autor do centenário Eu) em instituições como a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.
"Ele (Guilherme dos Anjos) possuía uma memória prodigiosa, hereditária, e sempre exaltava o trabalho intelectual do pai, conservando de memória tudo quanto produzira e dedicando-se exclusivamente aos estudos de sua obra desde a tenra idade".
A influência paterna atiçou a curiosidade do jovem Ricardo, que desde cedo reservou seu tempo para decifrar o vasto vocabulário de seu ancestral.
"Minha relação com meu poetavô foi de curiosidade, sobretudo pelo léxico abundante, essa mixagem de termos eruditos (cientificistas) e vulgares com que ele compunha seus poemas".
Ricardo conserva uma lembrança de adolescente, pasmo diante de sonetos e de palavras que não conhecia, como 'endimenina', 'xantocróide' e 'criptograma'.
"Achava incrível o poeta juntar estes termos com palavras simples, do cotidiano, tais como 'bandalhos', 'bacalhaus', 'entulho', 'coalhada fresca', 'fuligem', 'paralelepípedo', 'falências', 'fogão', 'bazar' e 'ferrolho'".
ATRAÇÃO IRRESISTÍVEL
Segundo o jornalista, a dificuldade na leitura inicial do Eu teve, para ele, e tem, para a maioria dos leitores, um efeito inverso: em vez de provocar antipatia, promove uma "atração irresistível".
"Até mesmo os leitores que não atinam, racionalmente, para os significados dos versos 'difíceis' que Augusto emprega nos poemas são fisgados pelo carisma do mistério", opina.
"Costumo dizer em minhas palestras que, por ser um poeta da condição humana, por sua temática aguda e gravemente existencial, Augusto dos Anjos e sua poesia, a poesia do Eu, identifica-se com a poesia requerida por todos os eus, por todos os egos".
Para Ricardo, quando a poesia alcança esta esfera ela passa a ser (ao contrário do que alguns críticos assinalam da dicção de Augusto dos Anjos), "confortante, no sentido da identificação, pura e simples".
"Augusto exprime bem, e sua expressão é bem expressa. Seus versos encontram profunda ressonância junto ao homem, ao público leitor. É algo que expõe sentimentos comuns, expõe a existência – com ou sem maiores explicações, com ou sem maior clareza".
Se os versos não cativam pela razão, aponta Ricardo, cativam pela emoção, pela carga emocional das palavras e da sonoridade: "E poesia é isso e mais alguma coisa", arremata, orgulhoso.
TIO QUE NÃO CONHECEU
Guilherme dos Anjos, pai de Ricardo, nasceu em 1913, um ano após a publicação do Eu e um ano antes da morte do paraibano, que já se mudara do Rio de Janeiro para Minas Gerais e perambulava por estabelecimentos de ensino, lecionando disciplinas como Geografia, Corologia e Cosmografia.
O primogênito vinha após o traumático aborto da esposa Ester Fialho, aos sete meses de gravidez. O incidente está registrado em um soneto assim dedicado: "Ao meu primeiro filho nascido morto com sete meses incompletos", escrito em 2 de fevereiro de 1911. O evento foi um 'baque' para Augusto.
"Meu pai comentava sobre os impulsos nervosos acompanhados da depressão, referindo-se ao comportamento de meu avô", lembra Ricardo. "Porém, isso não é uma memória 'privada', já que consta na obra completa de Augusto dos Anjos editada pela Nova Aguilar na seção 'Documentos Biográficos'", indica o dileto pesquisador.
De um acervo 'privado', pouco restou dos bens materiais de Augusto dos Anjos: "Tudo o que possuíamos encaminhamos para o genealogista amigo Adauto Ramos e para a cidade de Leopoldina (MG)", declara. "Acho que o Memorial de Augusto em Sapé contém, certamente, algumas 'relíquias'",
Ricardo refere-se ao Memorial construído em 2006 em Sapé, na antiga casa da ama-de-leite Guilhermina, que ele visitou há alguns anos.
"Estive lá e uma amiga, Berta Klüppel, disse-me que eu estava fazendo o caminho inverso do poeta. Sim, respondi com um trocadilho: um caminho 'em verso'. Vi a casa onde meu avô nasceu e viveu parte de sua existência à sombra da tamarineira que deu 'filhote', tendo uma muda sido levada pra Leopoldina e plantada, agora já crescida, junto ao túmulo de Augusto".
O túmulo na cidadezinha mineira guarda os restos mortais do poeta, que já foram alvo de disputa política: "Os restos mortais de Augusto foram objeto de tentativas políticas de translado desde a década de 1970. Tal intento foi negado peremptoriamente pela família dos Anjos, mantendo a última morada do poeta na cidade que o abrigou carinhosamente até a morte precoce".
Morte que não permitiu que Augusto e Ricardo se conhecessem.
Morte que o neto, convidado a declamar algum poema do avô, evoca citando 'Idealização da humanidade futura': passada a 'multidão dos séculos', o livro que sua genealogia lê, 'em letras garrafais', ainda é aquele que o poeta escreveu: o Eu.
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