CULTURA
"O túnel no fim da luz"
Quarenta anos depois, 'Chinatown' ainda mantém o status de 'noir' moderno e um dos grandes filmes de Roman Polanski.
Publicado em 20/06/2014 às 14:00 | Atualizado em 31/01/2024 às 17:37
“Vamos nos divertir um pouco. Eu serei o cara com a faca”, afirmou o diretor Roman Polanski depois de dispensar um furgão com uma dúzia de esperançosos atores para a pequena ponta em Chinatown, clássico que há 40 anos fazia sua estreia nos cinemas.
O próprio diretor protagonizou uma das sequências mais chocantes e memoráveis do filme: quando o detetive J.J. Gittes, vivido na pele de Jack Nicholson, é parado por dois homens após tentar escalar uma grade em uma investigação. O intimidador baixinho, de paletó branco e voz esquisita, coloca um canivete em uma de suas narinas. O sangue esguicha, consolidando a ameaça.
O cenário é a Los Angeles dos anos 1930, onde um ex-policial que atuou no bairro de Chinatown ‘mergulha’ de cabeça em um complexo esquema para desviar água de áreas agrícolas para fortalecer o desenvolvimento mobiliário urbano da ‘Cidade dos Anjos’ criada no meio do deserto.
Longe de ser um ‘noir’ convencional, mas bebendo na inspiração da literatura de Raymond Chandler, Chinatown joga luz nas sombras de sua fotografia em cores. A película mostra toda a obscuridade da época em que era produzida, vide a acusação de perjúrio, fraude e dolo dos assessores da Casa Branca no caso Watergate, culminando com a renúncia presidencial semanas após a estreia do longa-metragem.
No elenco, além de Nicholson, que fica com ataduras do tamanho de absorventes devido ao talho nasal na maior parte do filme, estão nomes como Faye Dunaway, uma mulher com um passado obscuro, e um dos grandes nomes de Hollywood, John Huston, como o magnata inescrupuloso, pai da personagem. Roteirizado por Robert Towne, velho amigo de Nicholson, Chinatown foi produzido por Robert Evans, um dos figurões do estúdio Paramount.
Na contramão do clichê e dos modismos de ‘happy end’ do cinema na época, o final da produção foi classificada como “um dos momentos mais cruéis do cinema americano”, segundo o New York Times. Filmes como Bonnie & Clyde - Uma Rajada de Balas (1967) e Sem Destino (1969), protagonizados por Faye Dunaway e Jack Nicholson respectivamente, eram exemplos do novo processo.
Escrito horas antes da filmagem pelo próprio Polanski (não creditado no roteiro), o final foi reconhecido por Robert Towne como “o túnel no fim da luz”.
TROCANDO FARPAS
Polanski não gostara de voltar a Hollywood, devido ao assassinato brutal de sua mulher, a atriz Sharon Tate, grávida aos 26 anos, pelas mãos de Charles Manson e sua seita, no final dos anos 1960.
Na cena onde foi creditado como o ‘homem com a faca’, o ator Roy Jenson que contracenou com Polanski na se-
quência, falou que o diretor fez aquilo claramente por causa da esposa morta tragicamente. “Ele não deixaria outro ator segurar um canivete se pudesse evitar. Nenhum outro faria aquele papel”, disse Jenson na biografia Polanski - Uma Vida (Nova Fronteira), de Christopher Sandford.
Perfeccionista, o diretor chegava a rodar mais de 30 vezes a mesma tomada. Seu temperamento também trouxe atritos no set, principalmente com Faye Dunaway, alegando beirar ao “assédio sexual” o que o cineasta fazia com ela.
Em uma das cenas, um pequeno fio de cabelo da atriz estava refletindo a luz e incomodando Polanski. Mesmo com os cabeleireiros colocando laquê em suas madeixas adequadamente, o problema ainda persistia. A solução para ele foi arrancar a raiz do problema literalmente, desencadeando uma fúria cega de Dunaway.
Depois de discutir acaloradamente as condições de continuar a trabalhar no filme, o diretor sentenciou calmamente: “Você pode brigar comigo, Faye, mas nunca estarei errado, eu sou o diretor.”
O que aconteceu em Chinatown, ficou em Chinatown.
Curiosidades sobre 'Chinatown'
O papel de Faye Dunaway, que tinha 32 anos na época, foi oferecido antes para Jane Fonda;
Stanley Cortez, antigo diretor de fotografia que tem no seu currículo clássicos absolutos como Cidadão Kane (1941), atrasava as filmagens por estar “completamente por fora” dos avanços tecnológicos do pós-Guerra. Em seu lugar foi escalado John Alonzo, que também era ator (ele participou do faroeste Sete Homens e um Destino);
Nos bastidores, Nicholson começou a sair com sua futura mulher, a atriz Angélica Huston, filha de John Huston. Isso contribuiu efetivamente para as cenas de confrontação dos antagonistas: "Você já dormiu com minha filha?", perguntava o personagem/ator no filme;
Nos EUA, apesar de ser considerado 'intelectual demais', Chinatown se tornou sucesso comercial no verão da sua estreia junto com filmes como Papillon, Banzé no Oeste e o primeiro Star Wars, Uma Nova Esperança;
No Oscar, o longa foi indicado para 11 estatuetas, incluindo Melhor Filme e Diretor, perdendo para Francis Ford Coppola e seu O Poderoso Chefão - Parte 2. Venceu apenas como Melhor Roteiro Original para Towne, que, envergonhado por ser o único ganhador, tentava esconder o prêmio debaixo do banco da limusine, segundo Nicholson.
Conteúdo do Blu-ray do 40° aniversário
Lançada este mês, a 'Edição Comemorativa de 40 anos' do clássico Chinatown em Blu-ray (Paramount, R$ 69,99) apresenta uma luva especial e um pôster de tecido.
Com um formato de tela Widescreen Anamórfico 2.35-1 e legendas em inglês, português e espanhol, o filme também tem o áudio original restaurado (2.0 Dolby TrueHD).
Totalizando mais de 2h, o material extra destrincha os 130 minutos de filme com comentários do roteirista Robert Towne com David Fincher (diretor de obras como Seven e O Clube da Luta).
Dividido em três partes, o BD apresenta o documentário Água e Energia Elétrica, em que o roteirista de Chinatown visita pela primeira vez, em 2009, o aqueduto de Los Angeles, EUA. A produção resgata a história real do projeto que trouxe o desenvolvimento para a cidade.
Já em Chinatown, Uma Apreciação, Steven Soderbergh (diretor de Traffic), Kimberly Peirce (diretora de Meninos Não Choram), Roger Deakins (diretor de fotografia de Onde os Fracos Não têm Vez) e James Newton Howard (compositor de O Sexto Sentido) comentam as camadas e a truncagem do roteiro, o elenco, trilha sonora, montagem e a fotografia que usa câmera anamórfica na mão para 'entrar' nas cenas mais violentas.
Completam a edição o trailer e os featurettes Chinatown: O Começo e o Fim, Filmando Chinatown e O Legado de Chinatown, todos com depoimentos de Ronan Polanski, o roteirista Robert Towne e o produtor (um dos diretores da Paramount) Robert Evans.
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