CULTURA
Opinião: nos 117 anos de Anayde Beiriz, canção de Elon resgata a memória da poeta
Canção “Anayde Beiriz” faz parte do álbum de estreia de Elon Damaceno.
Publicado em 18/02/2022 às 16:27 | Atualizado em 20/02/2022 às 22:23
Há 117 anos atrás, em 18 de fevereiro de 1905 na Parahyba, nascia a professora e poeta Anayde Beiriz.
Vanguardista, Anayde assumia a defesa dos direitos das mulheres, principalmente do voto feminino, da liberdade de expressão e autonomia. Falava sobre o direito de amar sem restrições, falava do amor livre.
Anayde Beiriz é principalmente conhecida por “agitar” a história brasileira quando teve suas cartas de amor, trocadas com o político João Dantas, expostas na imprensa paraibana pelo político rival, João Pessoa. Essa situação provocou, no dia 26 de julho de 1930, o assasinato de João Pessoa por João Dantas. Ao ser preso, João Dantas não demorou a ser encontrado morto na cadeia. Bem como Anayde, que foi perseguida pelo movimento revolucionário, demonstrando o caráter conservador dessa revolução.
Elon Damaceno, paraibano natural de Pombal, entra nessa história toda quando lança seu álbum de estreia “TATEIA”, cuja canção final é batizada com o nome da poeta Anayde Beiriz. O álbum foi lançado em janeiro deste ano. Composição de Elon, no palco e na gravação, a canção é dividida com a cantora Quei Souto.
Os versos iniciais, “o sentido do amor é não querer / fazer sentido pra agradar quem diz que deve ser”, remetem a hipocrisia social, à João Pessoa (pessoa & cidade) e sua arbitrariedade autoritária que vê no amor a condenação de uma mulher. Ao mesmo tempo, anos depois, “nada no mundo mudou / basta um instante pra ver”.
folhas secas na calçada pra pisar
já não sentem nossos pés há tempos, quero achar
alguém que não queira o céu
nem tela pra nos limitar
Corpos em pleno teatro de amor, separados pela política histórica. De 1930 para o agora: compondo guardado no silêncio do quarto, meio assombrado pelo isolamento provocado pela pandemia, algo se parece com o passado. Distância histórica. O céu é o limite? A tela é o limite? Alguém que não aceite um ou outro, além da circunstância histórica.
Por isso, “o amor sabe ser cruel / talvez por isso que seja tão bom / tão além de toda tola história/ de bem e de mal / ou do dia melhor de amanhã /de depois do juízo final”. Elon se afasta de noções dualistas e cristãs (no juízo final, onde nossos pecados serão interrogados, poderemos ser redimidos ou culpados). Sem ferinos juízos de valores, daqueles que tanto atormentaram Anayde, que foi duramente exposta na sociedade paraibana, Elon aceita a complexidade de uma relação que não é boa ou má, feliz ou triste, mas povoada de sentimentos reais, superior à qualquer ilusão.
A beleza da metalinguagem, a grande homenagem de Elon à Anayde acontece quando, no meio da canção, ele irrompe com versos falados, com um poema, como tão bem os fazia Anayde. Anayde era poeta, Elon estreita seus laços com ela ao declamar:
o amor não é para os fortes é para os sem sorte pois aprendem no tato da vida a subverter todo ato da ordem covarde da sociedade que só ama a morte
Nesses versos, eles se alinham. Nós nos alinhamos. Nós, os sem sorte. Que nada têm, mas buscam; e ao buscar, movimentam. Que aprendem no tato da vida a subverter todo ato da ordem. A ideia do amor como força transformadora e ato político perpassa todo o novo álbum de Elon. O amor como tática dos oprimidos.
Elon se opõe à morte de Anayde como mero efeito subjacente à disputa de poder entre dois homens, se opõe à revolução que come suas filhas, quando nos versos: um amor desses pra viver / certamente me faria mais feliz.
A oposição entre um amor pra viver x um amor pra morrer cabe perfeitamente se considerado que, em outubro de 1930, o movimento revolucionário foi deflagrado e Anayde passou a ser perseguida e apontada na rua como “a prostituta do bandido que matou o presidente”. Pouco depois, ela foi morta e enterrada como indigente em Santo Amaro. João Pessoa e João Dantas mataram Anayde? A revolução a matou? Bom, “um amor desses para viver/ certamente me faria mais feliz”, responde Elon.
Associar Anayde mais uma vez ao amor, poderia ser uma perigosa repetição de ideações do passado. Afinal, Anayde é lembrada como amante. Anayde-cartas-de-amor. Anayde livre, mas tão romântica que tiveram que pôr fim às suas asas. Poderia, mas não foi isso que Elon fez ao compor a canção.
Quem Elon nos mostra é Anayde. Uma mulher que, ainda que com a trajetória das cartas de amor expostas na imprensa: não é amante, pois é agente do próprio desejo (um amor com vontade de amar), nem culpada, pois é responsável por si mesma (um amor que é seu próprio nome). Um amor Anayde Beiriz. Anayde sentimento.
um amor desses pra viver certamente me faria mais feliz um amor com vontade de amar um amor Anayde Beiriz
Assim, Elon consegue falar do acontecimento histórico, resgatá-lo, opor-se a ele, atribuir novos sentidos, ao mesmo tempo em que reconhece que isto se estica até o tremendo Agora e se repete incessantemente na Nova João Pessoa, profundamente resto dessa história. Simultaneamente, ele reflete sobre o tal sentimento universalizante, o que nos assemelha em todos os tempos.Como ele próprio diz ,“nas brechas, falo de amor”. Isto também os fazem parecidos.
Essa é uma canção que, certamente, entra para o hall das que contam (cantam) o Brasil através de uma disputa narrativa, de forma a reinventá-lo poeticamente em direção a novos destinos.
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