CULTURA
'Tungstênio' surpreende com olhar estilizado e humano sobre periferias brasileiras
Belo e socialmente relevante, filme cativa por suas personagens.
Publicado em 21/06/2018 às 17:49 | Atualizado em 22/06/2018 às 14:46
TUNGSTÊNIO (Brasil, 2018, 80 min.)
Direção: Heitor Dhalia
Elenco: Fabrício Boliveira, Samira Carvalho, José Dumont, Wesley Guimarães
★★★★☆
O tungstênio é uma substância química que, na natureza, é encontrada apenas em combinação com outros elementos. Quando isolada, é conhecido por ter o ponto de fusão mais alto de todos os metais - apenas quando aquecido a mais de 3,4 mil graus Celsius o tungstênio passa do estado sólido ao líquido. O metal é, assim, mais que apropriado para dar título a Tungstênio (2018), filme que estreia nos cinemas paraibanos nesta quinta-feira (21).
Dirigido pelo pernambucano Heitor Dhalia - mais conhecido por O cheiro do ralo (2006) -, Tungstênio é baseado na HQ homônima de Marcelo Quintanilha. Situado na periferia de Salvador, o filme parte de uma situação cotidiana e, a princípio, irrelevante - dois pescadores utilizando bombas para capturar peixes - para explorar as sutis e complexas relações que se estabelecem às margens dos grandes centros urbanos brasileiros.
A narrativa do filme é guiada basicamente por quatro personagens: o policial Richard (Fabrício Boliveira); sua mulher, Keira (Samira Carvalho); o ex-militar Ney (José Dumont); e o jovem Cajú (Wesley Guimarães). Seguindo uma estrutura não-linear, Dhalia esmiúça as particularidades, desejos e contradições de cada uma de suas personagens. Richard, por exemplo, é um policial competente, mas abusa da esposa; Ney é um ex-milico insuportável do tipo que pede por intervenção militar, mas revela-se como um senhor solitário e, como todos nós, carente de afeto e companhia.
É justamente ao humanizar essas quatro pessoas, ao se negar em transformá-las em meros vilões ou heróis, que o filme alcança seu maior trunfo, traçando um retrato das tensões sociais e afetivas que permeiam as vidas anônimas e irrisórias das comunidades brasileiras ao mesmo tempo em que evita cair em representações e explicações simplórias: em Tugnstênio, um negro pode exercer um poder opressivo sobre outro através do racismo institucionalizado da polícia; e uma mulher que escolhe permanecer com o marido abusivo carrega consigo uma série de dores, de faltas do Estado e da sociedade e de portas fechadas que tornam sua decisão tão frustrante quanto compreensível. No filme, assim, os protagonistas exibem o caráter contraditório e coletivo que banha as criaturas da realidade.
Boa parte das escolhas que Dhalia toma são acertadas, unindo forma e conteúdo para atingir um objetivo específico. A presença maciça de tons de azul no longa parece, ao mesmo tempo, toldar o subúrbio soteropolitano com uma beleza desoladora e destacar a solidão e desespero das personagens. Especial atenção é dada ao tratamento da cor da pele: em uma determinada cena, Richard e Keira parecem reluzir como metal sob as lentes de Dhalia; e o que já foi previamente condenado como fetichização da negritude no cinema pode, aqui, soar como uma tentativa de trazer à tona as múltiplas camadas de violência que incidem sobre os dois corpos - corpos que, como o tungstênio, resistem às pancadas diárias da realidade e se negam a desistir.
O diretor explicou, em entrevista à Folha de São Paulo, que tentou adaptar a HQ de maneira mais fiel possível; e isso fica visível na versão fílmica de Tungstênio. Várias cenas utilizam enquadramentos incomuns no cinema, como no momento em que dois personagens, filmados em um ângulo vertical, são enquadrados na tela horizontal no cinema. Artifício que não soa como simples preciosismo: a escolha ressalta, até mais do que um contra plongeé (a câmera voltada de baixo para cima) destacaria, as relações de poder que estão ali estabelecidas. Muitos poderiam argumentar que essa abordagem estética revelaria um procedimento quase cirúrgico e provocaria certo distanciamento no espectador, impedindo um maior envolvimento emocional com o filme. E isso de fato ocorre: cenas potencialmente emotivas ou chocantes são observadas como que à distância, de um local seguro. Mas Tungstênio não é um filme que pretende deixar o público sentado na beira do assento, e distanciamento afetivo não é, aqui, sinônimo de monotonia.
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Isso dito, soam extremamente irritantes as intrusões quase constantes, nos dois primeiros atos, de um narrador onisciente em voz over (a "voz de Deus" cinematográfica). Dhalia explicou que procurou se manter fiel ao narrador "machadiano" dos quadrinhos - um narrador que sabe de tudo o que acontece, inclusive na mente das personagens, e muda constantemente de fidelidade e opinião de acordo com o protagonista que escolhe focalizar. Conquanto esse possa ser um recurso proveitoso na HQ, soa fácil e desnecessário no cinema: pelo menos metade das intrusões da voz narrativa poderiam ter sido evitadas sem prejuízo algum à história do filme. Incomoda, também, o grau de artificialidade presente em alguns dos conflitos do filme, como na cena em que Ney se envolve em uma discussão com um grupo de pessoas.
Apesar desses deslizes, Tungstênio é um triunfo do cinema nacional deste ano: esteticamente belo e socialmente relevante, o filme cativa por suas personagens de camadas múltiplas e pelo olhar que lança sobre as ruas e ribanceiras da periferia - e sobre os corpos que as percorrem. Corpos constantemente mutilados mas que, não se sabe como, se tornam resistentes e por fim imunes às estruturas que os atacam.
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