CULTURA
Sangrento mundo novo
Chega ao Brasil a edição definitiva da série em quadrinhos 'Do Inferno', uma minuciosa pesquisa de 10 anos sobre Jack, o Estripador
Publicado em 02/01/2015 às 7:00 | Atualizado em 01/03/2024 às 12:47
Na Era Vitoriana, quando a “infalível” polícia londrina, a Scotland Yard, recebeu uma carta junto com um pedaço de um rim supostamente enviada pelo que a imprensa sensacionalista da época apelidava de Jack, o estripador, o remetente estava escrito: “Do Inferno”.
Esse é o título de uma extensa pesquisa de 10 anos que o britânico Alan Moore escolheu para a sua série em quadrinhos sobre os assassinatos no miserável bairro de Whitechapel, na capital inglesa do final do Século 19.
Antes lançado no Brasil em quatro partes entre os anos de 2000 e 2001 pela Editora Via Lettera, a obra com arte de Eddie Campbell está de volta em um único e pomposo volume. Do Inferno (Veneta, 592 páginas, formato 21 x 28 cm, capa dura, R$ 94,90) chegou a virar um filme homônimo em 2001 estrelado por Johnny Depp que não repassava o mínimo da complexidade da trama arquitetada pelos quadrinistas.
Moore e Campbell não fazem mistério: já nos primeiros capítulos, eles trabalham com a teoria que os metódicos assassinatos das prostitutas partiram de uma conspiração entre a maçonaria e a Família Real Britânica para ocultar o nascimento de um filho bastardo do Príncipe Albert.
O algoz, no caso, seria o médico da realeza, sir William Gull. A obra se baseia no polêmico livro Jack, the Ripper: The Final Solution, de Stephen Knight, mas chega a não descartar as outras teorias, questionando as elucidações da fonte no extenso apêndice (com mais de 50 páginas) escrito pelo próprio Alan Moore no final do calhamaço.
Tanto que os autores também mostram um lado totalmente “místico”, simbólico e emblemático do que viria a ser o primeiro serial killer do mundo moderno. Em algumas passagens, o protagonista tem vislumbres do futuro como se tudo estivesse conectado.
“Do Inferno não é simplesmente outra versão da mitologia de Jack, o Estripador, mas uma novela gráfica que rivaliza com qualquer estrutura, complexidade, intriga e introspecção na mente humana – ou, pelo menos, uma introspecção na de Moore”, chegou a dizer ao Jornal da Paraíba o britânico Gary Spencer Millidge, autor da biografia Alan Moore - O Mago das Histórias (lançada no Brasil pela Mythos Books em 2012).
Um exemplo dessa complexidade é o capítulo 4, onde o senhor Gull, junto com o cocheiro que estará mancomunado com os assassinatos chamado Netley, vai visitar espaços arquitetônicos importantes de Londres com sua carruagem. Em cada um desses pontos marcados em um mapa, ele conta ao parceiro iletrado uma origem estrutural que está ligada ao poder ancestral que as mulheres tinham nos tempos remotos, antes de começar as conspirações dos homens para a derrubada desse status quo. No final do passeio, ligando cada ponto demarcado, o mapa revela um pentagrama.
RETRATO VISCERAL
A ideia é – através da narração do caso de Jack, o estripador – fazer um retrato visceral do nascimento do mundo contemporâneo.
Tão preciso quanto os cortes provocados pelo bisturi de William Gull, Moore e Camp- bell tracejam um cotidiano detalhado da vida social vitoriana, seja ela nas residências abastadas de quem era ligado à realeza, seja as mulheres que vendem seu corpo por algumas moedas nas vielas sujas e escuras londrinas.
Do Inferno também cruza diversos acontecimentos da época com os crimes do estripador. Faz alusões ao momento da concepção de Adolf Hitler, acompanha a descoberta do deformado William Merrick, mais conhecido pela alcunha de Homem-Elefante (que ganhou uma cinebiografia em 1980 por David Lynch) e coloca o mago Aleister Crowley ainda menino na trama, dentre outros fatos paralelos.
A precisão histórica é tamanha que o próprio Alan Moore relata que, caso o Eddie Campbell também fosse transcrever suas referências, o apêndice dos 16 capítulos teria o dobro do tamanho.
Fundindo dimensões e teses, ajustando na mesma linha de raciocínio o sagrado, o profano e o mágico, os autores fazem uma obra única, que é justificada em um apêndice em quadrinhos que encerra o volume, intitulado “A Dança dos Caçadores de Gaivotas”, uma metáfora acerca dos estudiosos do universo de Jack, o estripador, incluindo os próprios, tentando capturar a gaivota que representa a verdade por trás do personagem.
No fim, Moore revela que nunca quis tratar dos crimes, assassinatos, algozes e vítimas, mas sim, estava o tempo todo a tratar de nós próprios.
A única verdade absoluta é revelada na dedicatória que adorna a página dos créditos de Do Inferno, bem antes do leitor começar seu passeio de carruagem pela Londres de 1888: “Este livro é dedicado a Polly Nichols, Annie Chapman, Liz Stride, Kate Eddowes e Marie Jeannette Kelly. Vocês e suas mortes: apenas dessas coisas temos certeza. Boa noite, Senhoras”.
ADAPTAÇÃO NA TV
Assim como as rixas com grandes editoras norte-americanas a respeito dos direitos autorais das suas obras, Alan Moore vem comprando briga com Hollywood desde a onda vinda da década passada de adaptações cinematográficas de quadrinhos.
Ele já alegou nunca assistir às produções, além de abrir mão tanto dos lucros quanto dos créditos nos filmes, vide o próprio Do Inferno (2001), além de A Liga Extraordinária (2003), V de Vingança (2005) e Watchmen (2009).
Agora, para uma nova ira do ‘mago de Northampton’, o Canal FX anunciou que está desenvolvendo uma série de TV baseada em Do Inferno.
O produtor será Don Murphy, que também produziu o filme de 2001. Ainda não há previsão de lançamento ou mais detalhes.
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