SILVIO OSIAS
Água! Água! Perdemos Donato, o João músico que não gostava de poesia
Publicado em 17/07/2023 às 13:41
Em abril de 1975, Gal Costa cantou pela primeira vez em João Pessoa. Fez dois shows no Teatro Santa Roza. Era a turnê do álbum Cantar, lançado em 1974. Quem fazia os teclados - incrível! - era João Donato. Tinha 40 anos e, num número solo, cantava LugarComum, melodia sua, letra de Gilberto Gil. "Beira do mar/Todo mar é um/Começo do caminhar/Pra dentro do fundo azul" - Gil já gravara, um ano antes, no seu álbum ao vivo no Tuca.
Lugar Comum sempre remete à profícua parceria entre Donato e Gil, fortemente explicitada no álbum de 1975 cujo título é o mesmo da canção. Bananeira, número obrigatório nos shows de Donato, também é melodia sua letrada por Gil. Assim como A Paz, talvez a mais popular das músicas que surgiram do encontro dos dois artistas. João Donato compôs uma série de temas instrumentais (Leilíadas). APaz é uma delas e a única que se tornou realmente popular.
"Minha música vem da/Música da poesia de um poeta João que/Não gosta de música". O poeta João que não gostava de música era João Cabral de Melo Neto. "Minha poesia vem/Da poesia da música de um João músico que/Não gosta de poesia". O músico João que não gostava de poesia era João Donato. Os versos agora reproduzidos são o que Caetano Veloso, no lugar de um autorretrato, chamou de Outro Retrato, música de 1989. Falam do tamanho de Donato e da importância dele no trabalho de Caetano.
Na manhã desta segunda-feira (17), a morte de João Donato (Foto/Cristina Granato/Divulgação) surpreendeu os músicos e as pessoas que acompanhavam o seu caminho e por ele nutriam grande admiração. Acreano nascido em 1934, Donato tinha 88 anos e estava hospitalizado no Rio de Janeiro desde o início do mês, depois que foi diagnosticado com uma pneumonia.
João Donato deixou o Acre nos anos 1940 e se estabeleceu no Rio. Começou no acordeon e depois aderiu ao piano. Foi aluno de Moacir Santos como muitos dos nomes associados à Bossa Nova. Está associado à Bossa Nova, mas, a rigor, não era exatamente um bossanovista. Sua música vem de uma fusão muito singular do samba brasileiro com os ritmos cubanos e o jazz americano.
Era um mestre. Donato e suas melodias. Donato e seu piano econômico. Donato e seu balanço. Donato e sua voz pequena a cantar os muitos temas instrumentais que compôs e que ganharam letras dos seus parceiros - Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Lysias Ênio, esse último, seu irmão. Donato conquistou muitos ouvintes entre nós, as pessoas comuns que apenas gostam de ouvir música, mas, na verdade, ele foi, o tempo todo, um músico que fez música para músicos e, por esses, foi reverenciadíssimo.
João Donato gravou muito, no Brasil e nos EUA. Seus discos estão aí. É só ouvi-los. Donato veio de longe, de sete décadas atrás, mas nunca parou e nunca deixou de dialogar com todos. Era essencialmente moderno, moderníssimo. Seus parceiros podiam ser tanto os mestres da Bossa Nova, como João Gilberto, quanto os jovens instrumentistas de São Paulo com quem um dia desses gravou Donato Elétrico, ou o filho Donatinho, com quem gravou, em meio a sintetizadores, um delicioso disco retrô à moda dos anos 1970.
João Donato era João Donato. Singularíssimo como a sua música. Único Mesmo. Grande, muito grande, ainda que tenha ficado meio à margem do sucesso. Ouçam A Bad Donato e vejam a quantas já estava a cabeça dele há mais de 50 anos. A música de João Donato está no fundo do quintal do nosso olhar, olhar do coração. Água! Água!
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