SILVIO OSIAS
Ainda bem que Bolsonaro não sujou o Camões de Chico Buarque
Publicado em 25/04/2023 às 6:42 | Atualizado em 25/04/2023 às 8:14
Para mim, o fato mais importante desta segunda-feira, 24 de abril, foi a entrega, em Portugal, do Prêmio Camões a Chico Buarque. Em Sintra, o artista brasileiro recebeu o prêmio das mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do presidente português Marcelo Rebelo. Em 2019, ano em que Chico foi premiado, o então presidente Jair Bolsonaro se recusou a participar da homenagem.
A recusa de Bolsonaro foi uma expressão do seu absoluto desprezo pelos grandes criadores do Brasil, justamente aqueles que mais nos orgulham, que nos fazem um país melhor e nos representam internacionalmente. Mas assim era, assim é Jair Bolsonaro. No fundo, revendo quatro anos depois sua atitude, constata-se que é como se o desfecho mais feliz já estivesse traçado pelo destino para o ano de 2023.
Chico Buarque é um gigante da produção cultural brasileira. O Camões a ele concedido leva em conta o conjunto da sua obra de compositor popular, escritor de livros de ficção e autor de teatro. Pela facilidade com que a canção se comunica com as pessoas e pelas extraordinárias dimensão e qualidade do seu cancioneiro, é certamente nessa área da sua criação que Chico mais se destaca, e é nela que está o seu maior legado.
Projetado a partir dos festivais da segunda metade dos anos 1960, Chico faz parte de uma geração de grandes compositores populares do Brasil. Ao seu lado, há Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Edu Lobo, Paulinho da Viola. Junto desses, Chico construiu um songbook poética e melodicamente riquíssimo, que vai do mais belo lirismo à mais contundente crítica social e ao mais necessário protesto político.
Chico Buarque é um dos nossos amores. Chico Buarque está em nossas vidas há mais de 50 anos. Eu era uma criança de sete anos quando A Banda entrou em nossa casa. Falei isso para ele nos bastidores da sua turnê de 2018, e o artista, com aquele jeito tímido que todos lhe atribuem, apenas disse: "Éramos todos jovens".
Bob Dylan ganhou o Nobel de Literatura por sua obra poética. Merecidamente, a despeito da contestação de muita gente. Chico é melhor do que Dylan, me lembra um amigo na hora em que a TV mostra ao vivo a entrega do Camões. É verdade. Mas Dylan tem a seu favor o fato de ter nascido nos Estados Unidos e compor em inglês.
Em seu discurso, Chico estava emocionado e emocionou a gente. Falou pouco e foi certeiro no que disse: que tem antepassados negros e indígenas e que, nas suas veias, tanto corre o sangue do açoitado quanto do açoitador. São afirmações muito significativas desse artista que, além de ser imenso, é filho do homem que escreveu Raízes do Brasil, um dos livros fundamentais para quem quer entender o país.
No começo da década de 1970, no samba logo censurado Apesar de Você, Chico Buarque cantava: "Você que inventou a tristeza/Ora, tenha a fineza de desinventar". Agora em 2023, no discurso de agradecimento pelo prêmio, Chico enxergou uma rara fineza em Bolsonaro. E disse que, graças a esta, Bolsonaro, felizmente, não sujou com sua assinatura o diploma do Camões, deixando espaço em branco para a assinatura do presidente Lula.
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