SILVIO OSIAS
Bertolucci parece dizer que o melhor do homem está na arte
Publicado em 27/11/2018 às 9:06 | Atualizado em 30/08/2021 às 23:37
Maio de 68. A geração que virou a França de cabeça para baixo está afetuosamente retratada por Bernardo Bertolucci em Os Sonhadores.
Trancados num apartamento, três jovens fazem as suas revoluções individuais, enquanto, nas ruas, milhares fazem a revolução coletiva. Quando eles descem e se encontram com a multidão, enfrentam uma das questões cruciais daquele momento: adotarão a violência ou a não violência?
Realizado em 2003, o filme de Bertolucci vê maio de 68 de longe. Mas não fica somente nele. Nem no desejo que se tinha de contestar o sistema e tomar o poder.
Seus personagens falam muito de cinema e música. Chaplin ou Keaton? Hendrix ou Clapton? Dylan, Garbo, Joplin, Godard. A cinemateca francesa, as imagens de Fuller. Paixões que Alucinam, crítica de filmes, cinema americano versus cinema europeu. O encontro de Belmondo e Seberg em Acossado.
Maio de 68 pode ser a síntese de tudo. O instante em que a geração que queria mudar o mundo se manifestou de forma mais eloquente e radical. Mas Bertolucci se debruça sobre questões que não estão circunscritas a um mês nem a um ano determinado.
Para mim, o trecho mais belo de Os Sonhadores é quando os namorados vão ao cinema. Não como transgressores, mas como jovens comuns. O filme é Sabes o que Quero, comédia adorável da década de 1950, direção de Frank Tashlin. No início, tem aquela brincadeira com o cinemascope – a meia tela se expande para os lados e a tela toda é tomada pela imagem. Bertolucci usa a cena dos Platters e a música deles (You’ll Never Never Know) para dar um clima romântico ao programa dos dois personagens.
Na volta, eles se deparam com a realidade. Numa praça, o saldo de mais um dia de confronto entre policiais e manifestantes. O mundo está convulsionado. Mataram Luther King, líder da não violência. Logo matarão Bob Kennedy.
Se formos em busca do Bertolucci do final dos anos 1960, vamos encontrá-lo fazendo O Conformista. Um cineasta jovem olhando para o passado (a Itália sob o fascismo) para compreender e explicar o presente. No salto de quase quatro décadas até Os Sonhadores, seu cinema tratou do individual e do coletivo. Dos personagens sem nenhuma perspectiva de O Último Tango em Paris aos revolucionários de 1900.
Penso que Os Sonhadores é um filme que só poderia ter sido realizado por um homem velho. É isto que o torna mais belo, mais delicado, mais fiel como retrato de uma geração. É isto que o faz tão verdadeiro e, principalmente, justo com o espírito transgressor de uma época.
A geração que foi às ruas em maio de 68 chegou ao poder, já faz tempo. O pragmatismo de hoje destoa dos sonhos juvenis. Os Sonhadores é uma revisão poética de maio de 68. Bertolucci dá ênfase ao cinema e à música.
Encanta, comove e faz pensar que o melhor que o homem produziu está na arte.
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