SILVIO OSIAS
Chico Buarque muda letra de um dos clássicos do seu repertório. Roberto Carlos já fez isso várias vezes
Publicado em 17/03/2023 às 8:16
Leio em Mônica Bergamo, na Folha, que Chico Buarque mexeu na letra de um dos clássicos do seu repertório. Digamos que ele é o autor e que pode fazer a mudança que quiser. A notícia, que logo repercutiu em outros veículos, chamou minha atenção para um outro caso, o de Roberto Carlos. Começo por ele.
Roberto Carlos alterou as letras de várias canções. Algumas mudanças ocorreram na época da morte de Maria Rita, com quem era casado. O artista enfrentou um luto longo e severo. Nas alterações, tanto há motivos de ordem religiosa quanto os efeitos do transtorno obsessivo compulsivo, doença que o atormenta há muitos anos. Mas há, ainda, a correção de um erro de concordância.
O que Roberto Carlos fez com É Preciso Saber Viver ultrapassa o limite das coisas aceitáveis. A letra diz: "Se o bem e o mal existem/Você pode escolher". Impedido - pela crença, pelo TOC ou pelas duas razões - de pronunciar a palavra "mal", ele passou a cantar assim: "Se o bem e o bem existem/Você pode escolher". Levou um tempo para encarar outra vez a letra original e felizmente o fez. Dava vergonha alheia ouvi-lo dizer "o bem e o bem".
A letra original de Custe o que Custar pergunta: "Será meu Deus, enfim, que eu não tenho paz?". Questionar, diante de Deus, a ausência de paz? Nunca, para o Roberto católico! Revista, a canção ficou assim: "Somente em Deus, enfim, é que eu encontro a paz". A afirmação no lugar do questionamento.
Em Além do Horizonte, uma samba meio bossa nova, a palavra "gozar" foi retirada do verso "gozar a liberdade de uma vida sem frescura". "Se você não vem comigo, nada disso tem valor" se transformou em "mas se você vem comigo, tudo isso tem valor". E "de que vale o paraíso sem amor" virou "pois só vale o paraíso com amor".
Nem religião nem transtorno obsessivo compulsivo. Um erro de concordância foi o que levou Roberto Carlos a mudar a letra de Como é Grande o Meu Amor por Você. O original: "Nem mesmo o céu, nem as estrelas/Nem mesmo o mar e o infinito/Não é maior que o meu amor, nem mais bonito". Temos o céu, as estrelas, o mar, o infinito, e a concordância no singular "não é maior". Correção feita, a canção ficou desse modo: "Nem mesmo o céu, nem as estrelas/Nem mesmo o mar e o infinito/Nada é maior que o meu amor, nem mais bonito".
Roberto Carlos mexeu até no que não era dele. Autor de Força Estranha, Caetano Veloso cantou ao telefone para que Roberto gravasse. Caetano: "Por isso uma força me leva a cantar/Por isso essa força estranha". Um verso terminando com a palavra "estranha"? Roberto não gostou e sugeriu: "Por isso essa força estranha no ar". Sugestão feita, sugestão aceita. Até hoje, quando Caetano canta "por isso essa força estranha", o público naturalmente acrescenta: "No ar".
Agora, Chico Buarque. A música em questão é Beatriz. Melodia de Edu Lobo, letra de Chico. A gravação original, de 40 anos atrás, está no álbum O Grande Circo Místico, a trilha de um espetáculo toda composta por Edu e Chico. Quem canta é Milton Nascimento - muito provavelmente, o registro definitivo da canção.
"Será que é divina a vida da atriz" é o verso da letra original. Chico agora trocou "vida" por "sina", ficando "será que é divina a sina da atriz". Um alteração sutilíssima, fruto, digamos, de uma inquietação estética que não saiu da cabeça do autor. Ou filosófica. Ou estético/filosófica. Nada comparável a Roberto Carlos em suas compulsões.
Na atual turnê de Chico Buarque, que tem Mônica Salmaso como convidada permanente (Foto/Divulgação), é ela que canta Beatriz entre os números que abrem o show, antes da entrada de Chico. Fecho com Mônica fazendo Beatriz num vídeo de 15 anos atrás, e, em seguida, trago o áudio do primeiro registro, com Milton Nascimento.
BEATRIZ, com Mônica Salmaso
BEATRIZ, com Milton Nascimento
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