SILVIO OSIAS
Clarice Lispector nasceu há 100 anos. "Clarice é um MATRIMÔNIO da literatura em língua portuguesa"
Publicado em 10/12/2020 às 6:46 | Atualizado em 30/08/2021 às 20:53
Nesta quinta-feira (10), dia do centenário de nascimento de Clarice Lispector, abro espaço na coluna para texto da mestra em Linguística Luísa Gadelha, que escreve sobre literatura e é editora do site Zona da palavra.
Ler Clarice hoje em dia e o que ler dessa imensa escritora - foi no que pensei ao sugerir que Luísa fizesse o texto.
POR QUE LER CLARICE LISPECTOR EM SEU CENTENÁRIO
Luísa Gadelha
O escritor italiano Italo Calvino afirmava que um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Existem várias maneiras de interpretar essa declaração: um clássico pode ser um livro que não se esgota em suas inúmeras e divergentes leituras; que não é limitado no tempo e no espaço, comovendo leitoras e leitores de todos os lugares e gerações; que extrapola o universo do autor. Acredito que a obra de Clarice Lispector se enquadra em todas as assertivas anteriores.
Neste dia em que celebramos seu centenário, é fundamental relembrarmos o percurso de Clarice e a posição da sua obra na literatura brasileira. Por que ainda lê-la, quase meio século após sua morte?
Figura emblemática, Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, numa família judia, e veio com os pais para o Brasil com poucos meses de vida. Como ela própria disse, naquela terra nunca pisou, foi literalmente carregada no colo. Somado a isso o fato de que possuía um problema de dicção, o que lhe conferia um ar estrangeiro ao falar, e a sua experimentação no campo da estrutura da língua portuguesa, muitos acreditavam que o português não era a língua materna de Clarice.
Sua estreia na literatura, com o romance Perto do Coração Selvagem – uma expressão tomada emprestada do escritor irlandês James Joyce –, em 1943, não lhe rendeu comparações com nenhum outro(a) escritor(a) de língua portuguesa, justamente pela sua forma própria e peculiar de escrita.
Nesse sentido, apesar de brasileira, a literatura de Clarice é tão estrangeira que me parece impossível de ser catalogada em escolas ou movimentos literários. Clarice é uma questão de sentir: é fundamental ter sentidos bem aguçados para absorver o seu texto e se deixar conduzir por suas extensas ponderações e reflexões.
Alguns livros são mais significativos em sua obra: A paixão segundo G.H., Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Água viva e, claro, A hora da estrela, seu único romance que contém uma forte crítica social. Mas não há um roteiro para lê-los. Os contos, mais conhecidos e palatáveis, talvez sejam uma boa forma de se familiarizar com Clarice Lispector. Destaco Felicidade Clandestina, no qual a autora relata a paixão avassaladora que uma criança sente por um livro: “Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o”.
Considero A paixão segundo G.H. sua obra-prima, apesar de apresentar, inicialmente, um enredo aparentemente banal: G. H., uma mulher nos seus 30 e poucos anos, classe média, decide limpar o quarto de empregada; ao dar de cara com uma barata, G.H. se depara com o que há de mais esquisito, repugnante e asqueroso em seu interior. A partir daí, se lança num longo mergulho meditativo acerca de si própria. Existem várias metáforas que podem encarnar essa barata, como uma alusão ao livro A metamorfose, de Kafka – que também era judeu -, ou, ainda, o debate de uma temática recorrente em seus livros, a disparidade entre a natureza humana e a natureza animal, o racional e o subjetivo, o lógico e o irracional.
Clarice Lispector é um dos maiores, senão o maior, patrimônio literário brasileiro. Aliás, prefiro a palavra matrimônio: a primeira confere uma hierarquização social que não me agrada; a segunda nos dá a ideia de uma relação horizontal e bilateral em que ambos os lados ganham. Matrimônio, ao contrário de patrimônio, nos remete ao conceito de união, não de acúmulo. E acho que é isso que experimentamos ao ler Clarice: seu texto nos enriquece à medida que a ele nos conectamos e, contudo, não termina nunca de dizer aquilo que tinha para dizer, como profetizou Calvino. Nessa acepção, possui uma abundância, ou, antes, uma infinitude de facetas e significados.
Então, sim, Clarice é um matrimônio da literatura em língua portuguesa: não só apenas pela sensação de estranheza e, ao mesmo tempo, familiaridade que ela provoca em seus leitores, mas pela ousadia de experimentar uma linguagem intimista, menos direta, mais subjetiva. Uma linguagem perturbadora, densa, que sacode nossas engrenagens, nos ilumina e alarga nossa visão de mundo.
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Luísa Gadelha é graduada em Letras, mestra em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba e doutoranda em Estudos Literários e Feministas pela Universidade do Porto. Servidora da UFPB, também escreve sobre literatura e é editora do site de poesia Zona da palavra. Tem poemas publicados em revistas brasileiras e portuguesas.
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