SILVIO OSIAS
Elis e Tom, o filme, é deslumbrante, magnífico, lindo, comove e emociona
Publicado em 25/09/2023 às 7:29 | Atualizado em 25/09/2023 às 9:09
Elis e Tom, o disco, é de 1974. Em cartaz em 100 salas brasileiras, Elis e Tom, Só tinha de ser com você, o filme, é de 2023. 49 anos separam um do outro. Esse distanciamento faz toda diferença. Permite que todos, os que estão na tela e os que estão nas poltronas, vejam com mais clareza e lucidez o que, em fevereiro e março de 1974, se passou naquele estúdio de Los Angeles, onde Antônio Carlos Jobim, aos 47 anos, e Elis Regina, aos 29, gravaram um dos grandes discos da música popular brasileira.
O jornalista, escritor e agora membro da Academia Brasileira de Letras Ruy Castro disse que Elis e Tom pode ser o melhor documentário produzido no Brasil. Autor do livro Chega de Saudade, louco por bossa nova, Ruy Castro é suspeito. Mas bem que ele não exagerou nos elogios que fez depois de ver o filme numa sessão especial para os imortais da ABL. O melhor documentário é muito, mas Elis e Tom, sem qualquer exagero, é deslumbrante, magnífico, lindo. Comove e emociona.
Contemporâneos do disco em seu lançamento (sou um deles) devem lembrar que o álbum que reunia Elis Regina e Tom Jobim não nasceu clássico. Quem comprou e ouviu o LP em 1974 há, no entanto, de ter a recordação de como ele foi se cristalizando, crescendo e se confirmando como uma verdadeira obra-prima da música popular do Brasil. Afinal, registrava o único encontro da nossa maior cantora com o nosso maior compositor popular.
Dirigido por Roberto de Oliveira, Elis e Tom, o filme, tem o olhar da época através das imagens captadas em 16 mm enquanto o disco era gravado. E tem o olhar de hoje por intermédio dos depoimentos de quem estava lá ou, mesmo não estando (Roberto Menescal, Andre Midani), esteve diretamente envolvido com a produção. É crucial o fato de que Roberto de Oliveira era empresário de Elis em 1974. No documentário, ele mistura com absoluto êxito a figura do diretor com a de personagem, contando parte da história.
Como cinema documental, Elis e Tom é um filme muitíssimo bem resolvido. Alguém quis compará-lo a Get Back, o documentário de Peter Jackson sobre a gravação do álbum Let It Be, dos Beatles. É curiosa a comparação, mas pouco pertinente. A filmagem da gravação do disco dos Beatles, em 1969, já fazia parte de um pacote, tanto que Jackson trabalhou em cima de quase 60 horas filmadas. As imagens da gravação de Elis e Tom se deram quase que acidentalmente e geraram menos de cinco horas de material.
Peter Jackson editou o que já existia em áudio e vídeo. Roberto de Oliveira foi atrás dos sobreviventes para juntar os depoimentos atuais deles ao que foi produzido na época. Acrescentou fragmentos de performances ao vivo de Elis e de Tom, separados, antes da gravação do disco. Elis na Europa, tentando uma carreira internacional que não houve. Tom, já consagrado, cantando com Frank Sinatra, o maior cantor popular do século XX. O resultado é brilhante.
Vi Elis e Tom pensando em quão importante é se ter um filme assim no Brasil, um país que investe tão pouco em memória. Parece até inacreditável. Mas vi também pensando no quanto nós, os brasileiros, vivemos - citando aqui o Caetano Veloso de Americanos - entre a delícia e a desgraça, o monstruoso e o sublime. O Brasil que nos lega artistas como Tom Jobim e Elis Regina é o mesmíssimo país no qual o eleitor põe a escória no poder e, com 58 milhões de votos, quase põe de novo.
Contemporâneos do disco Elis e Tom (sou um deles), pessoas que, para além dessa contemporaneidade, viram Elis Regina e Tom Jobim ao vivo (estou entre elas) recebem esse filme de Roberto de Oliveira com um misto de saudade e incontida alegria. Diria que mais alegria do que saudade. O documentário é honestíssimo ao expor os conflitos que marcaram a gravação do álbum, mas acaba por nos dizer que a beleza e a grandeza da música felizmente se sobrepuseram ao choque entre os talentos e as vaidades dos artistas.
Elis tinha um temperamento muito difícil. Tom era um semideus. Entre eles, César Camargo Mariano, pianista, diretor musical e marido de Elis, não era ninguém. Faltou química, e isso quase inviabiliza o projeto. O filme vende a imagem de que houve um momento em que o que era amargo ficou doce. Não sei se é verdade, mas há o fato incontestável de que o disco foi gravado e é perfeito. O documentário dialoga com uma geração. Será fundamental se conseguir dialogar com o jovem espectador de cinema e atual consumidor de música.
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