SILVIO OSIAS
Esqueça os mortos que eles não levantam mais. Juntar Elis e Maria Rita é puro exercício de morbidez
Publicado em 05/07/2023 às 7:18 | Atualizado em 05/07/2023 às 7:32
James Dean morreu em 1955. Tinha 24 anos e acabara de fazer seu terceiro filme. O legado do ator são, portanto, esses três filmes: Vidas Amargas, Juventude Transviada e Assim Caminha a Humanidade. Foi com eles, todos grandes, que sua imagem sobreviveu ao século XX e assim permanece na terceira década do século XXI.
Já pensou se amanhã você sair de casa para ver um novo filme estrelado, graças à inteligência artificial, por James Dean? Será interessante? O James Dean criado artificialmente terá a mesma intensidade daquele de carne e osso que, após ter estudado no Actor's Studio, atuou diante das câmeras do seu tempo e está guardado na memória de quem pôde vê-lo?
Lembrei disso, nesta terça-feira (04), quando vi o comercial que celebra os 70 anos da Volkswagen no Brasil (Foto/Reprodução Youtube). No filme, que dura dois minutos, primeiro vemos Maria Rita dirigindo um novo modelo da Kombi e cantando Como Nossos Pais, a devastadora balada de Belchior imortalizada pela mãe dela, Elis Regina, há quase 40 anos.
Em seguida, dirigindo uma velha Kombi e também cantando Como Nossos Pais, Elis surge na estrada ao lado da filha. Uma sorrindo para a outra, as duas cantando juntas. Maria Rita, 45 anos, uma pessoa de carne e osso que tinha somente quatro anos quando a mãe morreu, em 1982, aos 36 anos, e Elis Regina, uma cabeça criada por inteligência artificial sobre o corpo de uma dublê.
O filme bombou. Emocionou a legião de fãs de Elis. E tem realização tecnicamente impecável. Mas remete ao lado negativo e não ao lado positivo da inteligência artificial. Não é como o comercial da Brahma que juntou Tom Jobim e Vinícius de Moraes cantando Eu Sei que Vou te Amar. Ali, eram imagens reais dos dois, não havia um "boneco" concebido artificialmente. Também eram imagens verdadeiras as que foram usadas para forjar o encontro de Nat King Cole com a filha Natalie Cole em Unforgettable.
O comercial da Volkswagen pode ser bonito, pode provocar emoção, mas aponta para um tempo em que os mortos voltarão para fazer filmes, para realizar shows e gravar novos discos. Talvez seja uma ideia aceitável no futuro. Hoje, ainda não me parece. Assusta porque mexe com a essência da criação intelectual, do genuíno talento artístico do ser humano.
É necessário observar também que o filme publicitário, intencionalmente ou não, inverte o significado melancólico da canção de Belchior e pode levar muita gente a não entender o que o bardo de Sobral quis dizer ao escrever, como conclusão da sua música, o verso "apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais". Ele não comemora, apenas constata e lamenta.
Quando vi Maria Rita cantando com um "boneco" de Elis, lembrei de um verso de Negro Amor, versão que, na década de 1970, Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti fizeram de It's All Over Now, Baby Blue, de Bob Dylan. Diz o verso da canção que Gal Costa gravou em 1977: "Esqueça os mortos que eles não levantam mais". Elis não vai voltar. O comercial da Volkswagen é puro exercício de morbidez.
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