SILVIO OSIAS
Gal Costa era uma flor incrível da Bahia. Quem disse foi Tom Jobim
Publicado em 10/11/2022 às 10:22
Em 1968, numa noite qualquer, Gal Costa e Caetano Veloso saíram do estúdio e foram a um restaurante em São Paulo. Tinham acabado de gravar Baby, que Caetano fez por sugestão de Maria Bethânia e deu para Gal cantar. No restaurante, casualmente, encontraram com Geraldo Vandré. Gal cantarolou Baby para Vandré, e o paraibano disse que aquilo era uma merda. Sempre que ouço Baby, lembro desse episódio, e não foi diferente em algum momento dessa quarta-feira, nove de novembro de 2022, o dia em que perdemos Gal Costa.
Duvido que Geraldo Vandré, que, ideologicamente, oscilou entre a mais destemida esquerda e a mais reacionária direita, tenha composto algo tão bonito, tão permanente, tão doce e tão bárbaro quanto Baby. E até perguntei a ele porque chamou a canção de merda, mas não obtive resposta. Essa lembrança me persegue, e é tão forte, por, simbolicamente, retratar a reação da banda mais careta da MPB ao que havia (e ainda há) de mais libertador, subversivo e transgressor em artistas como os que fizeram o movimento tropicalista no remoto ano de 1968.
Baby é minha primeira lembrança de Gal. Aos nove anos, 1968. Tocava no rádio. Falei da canção para a garota que escreveu UNE na palma da minha mão, na escola pública onde fazíamos o curso primário. Não muito longe, no centro da cidade, os estudantes corriam da polícia do governador João Agripino, e as moças tinham suas fardas rasgadas pelas baionetas da repressão. Baby tinha as cordas de Rogério Duprat, a voz joãogilbertiana de Gal, a melodia e os versos de Caetano ("Você precisa saber de mim"). E "Diana" a se fundir com "baiana".
Que Pena (Jorge Ben), Não Identificado (Caetano), Tuareg (Ben, outra vez), Meu Nome é Gal (Roberto e Erasmo Carlos) vieram com o ano de 1969. Caetano Veloso e Gilberto Gil haviam sido presos. Estavam confinados em Salvador, iam para o exílio. "É preciso estar atento e forte", dos dois, era o grito de Gal, menos joãogilbertiana, mais rock'n' roll. A voz dela ficara entre nós como, àquela altura, a voz possível do movimento tropicalista. "Dessa janela sozinha, olhar a cidade me acalma" - dizia a canção de Jards Macalé no disco de 1970.
E assim, Gal foi montando uma das trilhas mais bonitas das nossas vidas. Como Caetano, como Gil, como Chico Buarque, como Roberto Carlos, como os Beatles. Como tantos que nunca nos deixaram. Como tantos de quem nunca nos desfizemos. Gal Fa-tal. A guitarra de Lanny Gordin, ou de Pepeu Gomes, a evocar Jimi Hendrix. "Tente esquecer em que ano estamos" - era 1971, 1972. "Pérola Negra, te amo, te amo" ou "sua estupidez não lhe deixa ver que eu te amo". Menos veludo, menos cristal, mais labareda - pelo menos ali.
Índia tem a sanfona linda de Dominguinhos e a nudez da capa escondida por um saco plástico na vitrine da loja de discos. Cantar tem toda a coisa joãogilbertiana, a produção de Caetano, os teclados e os arranjos de João Donato. E, para mim, tem Gal vista de perto pela primeira vez, em dois shows no palco do Teatro Santa Roza. Era abril de 1975. Ela corria de um lado para o outro enquanto evocava Orlando Silva: "Tu és toda Bahia/É a flor do mocambo/Da gente de cor/Faz do amor confusão/Numa misturação...". Tinha raça e tradição, como na letra da música.
Temporada de Verão, Gal Canta Caymmi, Os Doces Bárbaros, Caras e Bocas, Água Viva. Ano a ano, disco a disco, belezas e mais belezas. As canções dos contemporâneos, o olho no passado, a construção de um repertório belo e rico que falava (ainda fala) da identidade de um país e de um povo. E em 1979, vem a explosão de Gal Tropical. A voz no topo, emissão perfeita, entre as notas mais graves e as mais agudas, pura técnica, imensa emoção. Índia, Força Estranha, Balancê. E Meu Nome é Gal atualizada no duelo com a guitarra.
Quem já fez Caymmi, agora fazia Ary Barroso, outro dos nossos gigantes. Quem já fez Caetano, Gil, Chico, Milton, agora fazia Djavan. Logo faria Cazuza. Mostraria os seios no palco, a blusa aberta, entre aplausos e vaias, e bradaria: "Brasil, mostra a tua cara!". A voz doce, cool, joãogilbertiana. A voz a gritar, como uma Janis Joplin daqui. Um cantinho, um violão. "Da maior importância, deve haver uma transa qualquer, pra você e pra mim, entre nós" - sim, um cantinho, um violão, mas com as pernas bem abertas, deixando todas, todos e todes cheios de tesão.
Gal Costa sempre foi essa grande voz, essa voz tamanha. Gal Costa sempre foi essa mulher transgressora, embora às vezes tão contida. Gal Costa falava pouco, mas cantava demais. Ao saber da sua morte, na manhã desse triste dia nove de novembro de 2022, meu choro esperou pelo instante em que ouvi a voz dela na televisão. Uma canção, mais outra e mais outra. Uma imagem, mais outra e mais outra. E aí não parou mais. A voz não parou mais. As imagens não pararam mais. O choro não parou mais. Mais ainda quando me vi diante do choro de Caetano e Gil.
O veludo, o cristal, a labareda - como tão precisamente definiu Nelsinho Motta. A voz de Gal está dentro de nós. Ela e nosso tempo são inseparáveis. Ela e o Brasil são inseparáveis. Ela é um pedaço muito importante do Brasil, esse lugar que é construído, destruído e reconstruído. Ela é um pedaço muito importante das nossas vidas. Ela é símbolo de um grupo de artistas extraordinários. Por isso, é tão doloroso perder Gal. Ela se vai sem ver a reconstrução que está começando. Ela era uma uma flor incrível vinda da Bahia, como disse Tom Jobim.
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