SILVIO OSIAS
Memória: Dom José era firme e corajoso à frente de uma igreja comprometida com os pobres
Publicado em 30/05/2023 às 7:36
Mônica é uma dessas amigas da vida toda. Éramos crianças no tempo em que nossas avós eram amigas. Amizade construída na Igreja do Rosário, em Jaguaribe. Mônica, devota de Santo Antônio, e eu, há muito afastado da igreja, tivemos, há pouco, uma longa conversa conduzida por nossas memórias afetivas.
Começamos pelo tema da morte e depois fomos para a vida. Uma conversa convergente, apesar das prováveis divergências entre uma mulher cheia de crença e um homem cheio de descrença. Falamos muito sobre a presença da Igreja do Rosário nas nossas formações. A igreja e seus frades franciscanos.
O quarteirão todo já pertenceu à paróquia. O cinema, a escola, o ambulatório, o campo de futebol. A igreja, que Frei Martinho edificou, é belíssima. Durante o dia, os vitrais jogam luzes coloridas sobre o interior. As pinturas no púlpito, quem fez foi frei Ambrósio, que era amigo da minha mãe.
Na conversa, fomos reconstruindo os ambientes - os jazigos, o salão paroquial - do jeito que eles estão guardados na memória. Foi aí que cheguei à sala onde conheci o arcebispo Dom José Maria Pires. Provavelmente, o gabinete de frei Constantino, o pároco daquela época.
O post desta terça-feira (30) sai, então, da conversa com a amiga e se desloca para as lembranças de Dom José, uma das criaturas mais extraordinárias que conheci. É sempre necessário lembrar dele para que não deletemos a sua presença em nossas vidas.
Com Dom José Maria Pires, foi amor à primeira vista! Minha mãe me levou para a avenida João da Mata, onde o novo bispo passou em carro aberto. Sorridente, acenando para as pessoas nas calçadas. Fiquei encantado, com o meu olhar infantil, por aquela figura. Era março de 1966. Dom José começava o seu longo período de 30 anos à frente do rebanho católico da Paraíba.
"Para meu amiguinho Sílvio, com o abraço de José Maria". Essa foto, com dedicatória e data de 24 de maio de 1966, ele me deu depois de uma audiência pública na visita pastoral que fez à Igreja do Rosário, em Jaguaribe. Minha mãe era católica, havia sido freira na juventude. Meu pai era comunista e ateu. Os dois, por motivos distintos, foram atraídos pela figura de Dom José. Posso dizer que fui junto com eles.
Trocávamos cartões, cartas. Até que, um dia, ele disse que queria ir à minha casa. O ano era 1968. Chegou lá dirigindo um fusca, num sábado à tarde. Foi recebido por um coral infantil que meu pai e minha mãe formaram e ensaiaram com os meninos da vizinhança, meus amigos. Dom José, sentado numa velha cadeira de balanço restaurada para recebê-lo e toda pintada de vermelho, conversou mais com as crianças do que com os adultos. Comportou-se como se fosse uma delas, só que dizendo coisas de gente grande.
O que guardo dele na minha memória afetiva não cabe num texto. Mas posso mencionar algumas coisas:
O sermão das sete palavras da sexta-feira santa de um ano qualquer, na Catedral Metropolitana. O arcebispo parecia dar novo significado ao texto evangélico.
O apoio aos estudantes que foram às ruas em 1968. Dom José foi ao encontro deles no centro da cidade.
A criação de um centro de defesa dos direitos humanos, que funcionava ali na Almirante Barroso, sob o comando do advogado Wanderley Caixe.
A luta pela terra em Alagamar. Entre as ligas camponesas e o MST.
A noite de Natal em que transferiu a missa da Catedral para a Praça João Pessoa e lá celebrou ao lado dos agricultores acampados.
A recusa de receber o título de Cidadão Paraibano quando entendeu que seu discurso passaria por uma censura prévia da Assembleia Legislativa.
A presença na Missa dos Quilombos, no Recife, ao lado de Dom Hélder, Dom Pedro Casaldáliga e Milton Nascimento.
A fala na estreia da Cantata Para Alagamar - trabalho que, como lembrou, reunia três homens de nome José. Um pastor católico (ele próprio), um judeu (José Alberto Kaplan) e um ateu que não acreditava nem na existência histórica de Cristo (Waldemar José Solha). Essa fala resume muita coisa daqueles tempos difíceis. Mas contém, sobretudo, uma grande lição de tolerância. A tolerância que anda tão escassa no Brasil.
Dom José Maria Pires foi firme e corajoso como pastor de uma igreja comprometida com os pobres, mas nunca perdeu a capacidade de dialogar. Com o sorriso que oferecia aos estudantes ou aos agricultores, se apresentava aos militares do Grupamento de Engenharia ou ao governador de plantão no Palácio da Redenção.
A voz era de uma beleza que parecia música. Quase sempre mansa, sem perder a firmeza. Tenho a alegria de ter sido contemporâneo da sua passagem pela Paraíba. Conheci poucos homens tão especiais quanto Dom José, Dom Pelé, Dom Zumbi!
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