SILVIO OSIAS
Reinventor do cinema, Jean-Luc Godard morre aos 91 anos. AG e DG, cinema é antes e depois dele
Publicado em 13/09/2022 às 8:42 | Atualizado em 13/09/2022 às 9:20
Na primeira metade da década de 1970, filmávamos, no centro histórico de João Pessoa, uma cena de A GuerraSecreta, curta-metragem amador em Super 8. O diretor era o crítico de cinema Antônio Barreto Neto. Houve um momento em que questionei algo que julguei ser um erro na construção da narrativa, argumentando que aquilo causaria problemas na montagem. A resposta de Barreto foi uma aula, breve no tamanho, mas imensa no conteúdo: "O cinema acabou com isso em 1959, Godard acabou com isso quando fez Acossado".
Isso é memória afetiva. Pode não ter importância alguma, mas foi do que lembrei quando vi, nesta terça-feira (13), a notícia da morte, aos 91 anos, do cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard. Meninos e meninas da geração Z podem ver um filme de Godard e achar que é banal, posto que tudo se banalizou. Não sabem que há Godard no melhor cinema que se faz no mundo, e no pior, também. Como há num vídeo de uma canção popular, numa telenovela ou num comercial. Ou quando Quentin Tarantino adotou o Band a Part para batizar sua produtora.
Não é possível ver os filmes de Godard sem enxergar a assinatura de um dos maiores cineastas do mundo. Nele, a criação se deu através da ruptura com a tradição e da reinvenção da linguagem do cinema. Ele não é, portanto, da linhagem também imprescindível dos que formularam a escrita, mas do grupo que a reformulou.
Acossado, seu primeiro longa, foi realizado em 1959 por um homem de 29 anos. Não seria o que é sem o que houve antes: a crítica exercida nos Cahiers du Cinéma, publicação que teve Godard - e também François Truffaut, Claude Chabrol e Jacques Rivette - como um dos seus colaboradores. Aqueles jovens cineastas que, na França da virada dos anos 1950 para os 1960, migraram com êxito da crítica para a realização, ofertaram ao mundo do cinema uma das suas revoluções: o movimento que ficou conhecido como Nouvelle Vague.
Quando vemos Acossado, a estreia de Godard, e Os Incompreendidos, a estreia de Truffaut, percebemos logo que os dois nomes principais da Nouvelle Vague trilharão caminhos não apenas distintos, mas opostos. Em Truffaut, está longe de haver a ruptura que há em Godard. Os Incompreendidos é quase canônico, ainda que extraordinário. Acossado, não. É um negócio absolutamente novo, transformador, influenciador de muito do que se viu no cinema dali por diante.
O melhor do cinema de Jean-Luc Godard está nos anos 1960. Acossado (Foto/Reprodução) é o verdadeiro manifesto da Nouvelle Vague, escreveu Jean Tulard em seu Dicionário de Cineastas. Seguem-se A Mulher é uma Mulher e Viver a Vida e O Desprezo e Bande à Parte e Uma Mulher Casada e Alphaville e O Demônio das Onze Horas e Masculino-Feminino e A Chinesa e Weekend à Francesa. São filmes essenciais à compreensão do cinema dos anos 1960. Alguns, à própria compreensão daquela década turbulenta.
Mas não são filmes fáceis. O cinema de Godard é de difícil assimilação, e o tempo o tornou cada vez mais árido. O cineasta é um inquieto ativista no campo da estética e um artista permanentemente movido pelas incertezas ideológicas.
Em meados da década de 1980, Je Vous Salue, Marie escandalizou os católicos do mundo ao atualizar a história da concepção em Maria. No Brasil, pressionado pelo clero, o governo Sarney interditou o filme, episódio vergonhoso num país que dava os primeiros passos rumo à redemocratização. Todos acabaram vendo este Godard em seus aparelhos domésticos de vídeo.
Godard envelheceu fazendo cinema. Os cinéfilos que amam os filmes da sua juventude, com certeza, permanecem enxergando a beleza dos seus trabalhos recentes. Por mais herméticos que eles sejam. Como não se deixar seduzir, por exemplo, pelas imagens de Filme Socialismo? É algo semelhante a amar o Glauber Rocha de Deus e o Diabo na Terra do Sol e não compreender o delírio final de A Idade da Terra.
Godard, nós - que amamos o cinema - o saudamos!
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