SILVIO OSIAS
Retrato do artista diante da morte
Publicado em 14/09/2017 às 6:32 | Atualizado em 31/08/2021 às 7:44
Mexendo no Youtube, reencontro esse vídeo que muito me comoveu quando o vi pela primeira vez, em 2010, por ocasião da morte do músico Paulo Moura.
Resgato, então, o texto que escrevi na época.
Comovente a imagem de Paulo Moura tocando Doce de Coco dois dias antes de morrer, na Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro. Ele se foi na segunda, 12 de julho. A gravação é do sábado, 10. Sentado, com o braço direito ligado ao soro, Moura executa ao clarinete o tema composto por Jacob do Bandolim e é acompanhado por um piano elétrico. Parece estar na varanda de um quarto da clínica onde passou seus últimos dias.
A execução é imprecisa, os improvisos não soam como nos discos que gravou ou nos palcos em que se apresentou, mas não importa. O que procuramos ali não é mais o homem no abismo da improvisação. O que temos naquelas imagens e naqueles sons é um homem diante da morte. E certamente consciente da proximidade dela.
O músico que o acompanha não aparece. A câmera se detém em Paulo Moura, enquadrado sempre em primeiro plano. Às vezes, num big close que nos deixa ver seus olhos claros. O chapéu remete a Tom Jobim, de quem, em seu último disco, gravou algumas composições num formato que chamou de AfroBossaNova. É Moura ao lado do bandolinista Armando Macedo, relendo Tom com uma “pegada” afro-baiana. Dialogando – quem sabe? – com os afro-sambas de Baden e Vinícius. Ou com os precursores destes (Água de Beber, O Morro Não Tem Vez).
Vi Paulo Moura ao vivo pela primeira vez no Teatro Santa Roza, no Projeto Pixinguinha de 1978. Na última vez em que esteve aqui, trouxe o AfroBossaNova para a Praça do Povo do Espaço Cultural, numa noite de chuva torrencial e pouco público. Durante o show, disse a um amigo que estava ao meu lado: “Contemple. É Paulo Moura aos 75 anos, tocando Tom”.
Nos bastidores, conversamos sobre música: os sambas de Jobim que parecem antecipar os afro-sambas de Baden e Vinícius; as lembranças do histórico show da Bossa Nova no Carnegie Hall; a sua presença no palco, a de Oliver Nelson na plateia. Nelson e The Blues and the Abstract Truth, disco extraordinário do jazz.
E lembrei dos discos que gravou. Dos que prefiro: Confusão Urbana, Suburbana e Rural, que tem Espinha de Bacalhau, de Severino Araújo; e Mistura e Manda, que inverte o formato usualmente adotado pelos músicos de jazz, do improviso dando sequência ao tema. Em Chorinho pra Você, também de Severino Araújo, o improviso vem antes do tema.
Volto à Clínica São Vicente. No final da execução de Doce de Coco, os amigos ao redor aplaudem. Wagner Tiso chega perto e lhe dá um abraço. Paulo Moura beija o clarinete. A mulher que está ao seu lado também beija o instrumento. Vejo a imagem pensando que apenas dois dias separavam o artista da morte.
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