SILVIO OSIAS
Solha não acredita em Jesus, mas Jesus é a obsessão da sua vida
Publicado em 19/03/2024 às 7:26
Estava terminando de ler a autobiografia de Solha quando a filha caçula de Roberto Peixoto me avisou da morte do pai. Roberto Peixoto e meu pai foram amigos desde a infância. Foi Roberto que levou Solha, seu colega de Banco do Brasil, lá em casa por volta de 1970, 1971.
Solha tinha 29, 30 anos, e queria conversar com meu pai sobre astronomia. A conversa tnha a ver com um livro que pretendia escrever. O tema, posso resumir assim: Jesus Cristo nunca existiu. Meu pai gostou da conversa dele, admirou sua inteligência, mas discordou das suas teses.
O livro, anos mais tarde, se chamou A Verdadeira Estória de Jesus, mesmo título do espetáculo teatral. Estória e não História. Faz tempo que Jesus está no radar de Solha. Já era tema daquela visita ao meu pai, há mais de 50 anos. Veio a se transformar numa obsessão da sua vida, vemos na autobiografia que lançou há pouco.
Waldemar José Solha nasceu em Sorocaba, interior de São Paulo, em maio de 1941. Sim, mas podemos dizer que não. Na verdade, nasceu no sertão da Paraíba no início da década de 1960 quando, jovem concursado, veio trabalhar no Banco do Brasil, primeiro em Patos, logo depois em Pombal.
Não há de ser por acaso que sua autobiografia começa com lembranças dos seus anos no sertão paraibano. Foi em Pombal que Solha se fez homem. Para além disso, foi em Pombal que Solha se descobriu e se fez esse notabilíssimo artista multifacetado que tanto nos orgulha.
Autobiografia. Livro de memórias. As duas coisas juntas. Literatura não é a minha praia. Muito menos crítica literária. Mas posso dizer que Solha encontrou um formato muito atraente para contar a história da sua vida, o homem e o artista cheio de dilemas.
"Nasci em Sorocaba em 1941". E lá vem uma história em ordem cronológica. Seria um caminho muito natural, mas não foi o caminho de Solha. Sua autobiografia é a reunião de fragmentos reunidos fora de qualquer cronologia. Juntos, eles oferecem ao leitor a história da vida de Solha.
Solha escreveu essa autobiografia no Face antes de transformá-la em livro. Li quase tudo na rede social, em outra ordem, antes de ler o livro. A leitura do livro me trouxe a lembrança dos textos postados no ambiente digital, mas também me remeteu ao homem/artista cuja trajetória sigo de perto.
Jesus é a obsessão da vida de Solha ou talvez divida esse posto com o Hamlet de Shakespeare. Ambos vão e voltam na autobiografia. Hamlet, aliás, chegou bem perto de nós quando Solha fez uma leitura, à luz do mito de Édipo, de A Bagaceira e provocou a ira de José Américo de Almeida.
Hamlet é personagem de ficção. Jesus, na ótica de Solha, também é. Mas Solha, que não tem religião, se aproximou de um pastor do rebanho cristão - o arcebispo Dom José Maria Pires - quando fez, com José Alberto Kaplan, a Cantata Para Alagamar. E diz que, ao conhecer Dom José, conheceu um santo.
A Cantata Para Alagamar reuniu três homens de nome José - observação sensível feita por Dom José. O bispo católico José Maria, o judeu José Kaplan e o ateu José Solha, que chegou por aqui dizendo que não acredita em Jesus Cristo. Fala precisa sobre a possibilidade de entendimento entre os diferentes.
Waldemar José Solha. W.J. Solha. Solha. O cara é incrível na ficção, em prosa e em verso. Desde Israel Rêmora, que, há 50 anos, ganhou o Prêmio Fernando Chinaglia, conquista "profetizada" pelo crítico Antônio Barreto Neto depois da leitura dos originais.
Solha é pintor com domínio da técnica que muito artista plástico famoso não tem. Solha é homem de teatro, autor e montador. E é ator de teatro e cinema. No palco, foi Pilatos. No cinema, o maior momento foi em O Som ao Redor, primeiro - e extraordinário - longa-metragem do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho.
A convite de Chico César, Solha escreveu uma Paixão de Cristo para ser encenada ao ar livre sob os auspícios da Prefeitura de João Pessoa. Chico, que era uma espécie de secretário municipal de Cultura, vetou o texto por temer a associação que Solha fazia entre o Império Romano e o nazismo.
Narrado no livro, o veto, que nunca foi digerido pelo autor, deu origem a uma tela. As tintas no lugar das palavras censuradas, uma maneira de atirar em algum lugar - ou em novo formato de arte - o trabalho rejeitado logo por um artista com o perfil libertário de Chico César.
Solha é um artista permanentemente angustiado e insatisfeito com a criação. Sabe muito bem disso quem o conhece, quem conversa com ele. Essa angústia percorre a autobiografia e, no fundo, é a razão da existência do livro, escrito por um autor repleto de perguntas e em busca de respostas.
Os textos, sempre muito bem escritos, são curtos e de fácil leitura. Às vezes contam histórias simples do cotidiano do autor. Outras vezes se aprofundam nos seus questionamentos sobre a existência e as expressões da arte. Oferta um retrato que, como um quebra-cabeças, será montado pelo leitor.
Singular, mas improvável, exercício para o leitor seria dar ordem cronológica ao texto de Solha. A leitura da autobiografia - AUTOB/I/OGRAFIA, está grafado assim - instiga e provoca o leitor. A clareza da narrativa pode até disfarçar, mas não esconde a densidade desse autorretrato do artista quando velho.
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