CULTURA
Toda mulher é uma ilha
Publicado em 16/11/2013 às 8:00 | Atualizado em 27/04/2023 às 13:20
Na ilha grega de Ítaca nasceu Ulisses e por ele esperou Penélope, tecendo seu véu interminável. A ilha de Narelle, protagonista de Ithaca Road (Cia. das Letras, 112 páginas, R$ 32,00), novo romance do Paulo Scott, é, na verdade, um continente: a Austrália ou, mais precisamente, Sydney, para onde o escritor gaúcho foi enviado em 2008 pelo projeto Amores Expressos.
Enquanto espera pelo irmão, dono de um bar-restaurante à beira da falência, Narelle lida com o véu de sua pele que se desmancha (ela tem psoríase) e conhece a misteriosa Anna, uma garota que reproduz o mundo em torno dos desenhos que passa o dia esboçando no banco de um parque.
“Cortei vários trechos envolvendo Anna e quis deixar o irmão de Narelle como um Ulisses a respeito de quem pouco importa se irá voltar para casa (a ilha de Ítaca) ou não”, explica Scott, justificando o título de um romance enxuto, de poucas páginas, que deu um certo trabalho ao autor de Habitante Irreal (2011), livro que mereceu o Prêmio Fundação Biblioteca Nacional.
“Quando comecei a escrever o Ithaca Road a intenção era a que saísse um livro bem despretensioso, com uma história bem simples, direta, despretensiosa. De certa forma, acho que consegui”, opina, para complementar em seguida: “Levei dois anos e meio para escrever essa história, que foi a terceira que concebi para o projeto – todas elas bem diferentes, mas sempre girando em torno duma personagem feminina que se chamaria Narelle. Sou muito lento para escrever, porque escrevo e depois apago tudo e reescrevo de novo. Não é um processo tranquilo”.
O nome da personagem, segundo ele, chegou antes mesmo do próprio enredo: ‘Narelle’, em maori (idioma falado por nativos da Nova Zelândia) significa ‘a que vem do norte’. A heroína de Scott domina a narrativa. Narelle é uma mulher viajada, emotiva e financeiramente independente, que se move de skate pelas ruas de Sydney e dribla a burocracia de um processo ameaçado pela ausência inesperada do irmão. Uma novela em forma de romance ou um romance em forma de novela?
“O que acontece é que o livro é uma novela com estrutura de romance”, responde. “A protagonista e o narrador (que são a mesma pessoa) se juntam num arco narrativo bem peculiar, de maneira que várias pontas da novela ficam soltas, como poderia acontecer comodamente numa novela, mas o núcleo dramático em torno dos cinco dias de superação de um trauma pela protagonista, Narelle, se impõe, duma forma meio experimental até, dando uma impressão incômoda de romance inacabado”.
O efeito dividiu a opinião do público: “Isso agradou muita gente, mas os retornos dos leitores, até o momento, têm sido bem variados, porque muitos esperavam que eu mostrasse toda a história, apresentasse todas as soluções de todos os núcleos dramáticos, todavia a intenção estética que impulsionou não foi essa”.
O livro de Scott é um dos poucos da coleção Amores Expressos que não tem personagens brasileiros, o que, lembra o autor, era uma exigência contratual ‘burlada’ por muitos dos seus pares. A única menção que se faz ao Brasil no romance diz respeito ao país no qual está o namorado de Narelle, um jornalista que investiga crimes ocorridos no país, relacionados à extração de minério de ferro.
Apesar da passagem pela Austrália, Scott afirma que alguns personagens foram extraídos de sua experiência em outros países, como a Inglaterra: “Pesquisei muito sobre autismo e também muito sobre a cultura dos maori. Narelle é inspirada em pessoas que eu conheço e que moram em Londres, uma cidade que conheço relativamente bem. Você vai colando traços aqui e ali até que a personagem ganha vida e, no caso de Narelle, ganha força suficiente para figurar como a protagonista”.
O POETA ‘MONSTRO’
Também poeta (O último, O Monstro e o Minotauro, de 2011, foi escrito em parceria com o cartunista Laerte), Paulo Scott confessa cometer versos todos os dias e deve “se retornar” poeta em breve, com um título que tem algo a ver com a saga de Narelle: Mesmo Sem Dinheiro Comprei um Esqueite Novo. “Não penso que o poeta esteja sufocado. São momentos diferentes do processo de escrever no qual sempre há mudanças de aspirações e interesses e entusiasmos. Quando eu ‘me retornar’ como poeta sei que já não serei o poeta que era antes”.
Para ele, a prosa abarca a poesia: “Acho que minha poesia está na prosa. Minha poesia sozinha é muito hermética e dura. Gosto disso, mas acho que já não exploro essa inclinação estética da forma que explorava antes. É um processo de autoleitura e autoentendimento muito difícil de sintetizar e explicar”.
Além do novo volume de poemas (“ainda não sei se o lançarei sem novas modificações. A verdade é que nunca termina”), outro livro de título extenso está em vias de sair, este um romance que surge depois que Scott, formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul e mestre em Direito Público pela UFRSC, muda-se para o Rio de Janeiro, onde vive há cinco anos.
Trata-se de O Ano em que Vivi Só de Literatura. “O escritor deste livro O Ano... nem de longe serei eu”, avisa, instado sobre uma crítica atualmente minada quanto ao ‘umbiguismo literário’ de uma geração de escritores refletindo sobre o próprio ofício na prosa. “O livro é uma crítica ao universo literário (uma autocrítica até, mas não me colocarei, não colocarei as minhas questões). Quanto aos detratores, bem, o ódio deles, as críticas apaixonadas, muitas vezes pertinentes, só completam a obra contra a qual seu empenho se coloca; é um processo inevitável, necessário e, quando se tem a sorte de pegar pessoas inteligentes travando a discussão, rico”.
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