CULTURA
Um criador de problemas
Escritor espanhol Javier Cercas, fala em entrevista ao JORNAL DA PARAÍBA, sobre suas obras 'Anatomia de um Instante' e 'Soldados de Salamina'.
Publicado em 29/08/2012 às 6:00
Para Javier Cercas, um bom romancista cria problemas onde ninguém vê. Antes de publicar Anatomia de um Instante, livro que mereceu do suplemento literário do El País o título de melhor livro em espanhol de 2009, ninguém tinha se perguntado, por exemplo, por que, durante um mal sucedido golpe de Estado na Espanha, em 23 de fevereiro de 1981, três parlamentares permaneceram sentados em seus assentos enquanto os demais se atiravam ao chão, tentando desviar dos tiros disparados pelos golpistas.
"Eu não só me perguntei o porquê como também, com o livro, tentei converter a questão em um problema fundamental, político e moral, para a história do meu país e para qualquer leitor de qualquer país", declarou o escritor, em entrevista exclusiva para o JORNAL DA PARAÍBA.
Espanhol da província de Cárceres, professor de literatura hispânica na Universidade de Girona, Cercas foi um dos convidados estrangeiros da 10ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no mês de julho.
O autor participou de uma mesa sobre história e ficção com o colombiano Juan Gabriel Vásquez e assinou seus dois livros impressos este ano pela Globo Livros: Anatomia de um Instante (436 páginas, R$ 49,90) e Soldados de Salamina (274 páginas, R$ 34,90), que já vendeu mais de meio milhão de exemplares na Europa e ganhou reedição brasileira pelo selo Biblioteca Azul.
"Para que mentir: eu me considero um bom romancista, mas seria um pouco presunçoso reconhecer-me como tal em público, não acha?", brinca o escritor e jornalista. "Quero dizer que, supondo que nestes dois livros eu tenha criado problemas que antes deles não existiam, deveria ser o leitor quem os apontasse.
De qualquer forma, ao fim e ao cabo sou, bastante presunçoso mesmo", arremata, sem falsas modéstias.
Soldados de Salamina foi publicado originalmente no Brasil em 2001. A obra, na qual um jornalista, alterego de Cercas, tenta desvendar a história por trás do conflito que ocorreu durante a guerra civil espanhola (1936-1939), foi adaptada para o cinema em 2003, sob a direção do também escritor David Trueba.
"Em cada caso, o processo de investigação histórica de um livro é distinto, e é esse processo que determina a forma do livro", conta Javier Cercas. "Em Soldados..., por exemplo, tudo foi relativamente breve, porque não havia muito o que investigar: o livro está centrado em um minúsculo episódio, e é muito pouco o que se podia saber dele, porque não há documentos e só uns poucos testemunhos orais".
LISTA TELEFÔNICA
Javier Cercas defende uma noção ampla do romance: em artigo recente na revista Metáfora, dialoga com a versão de Mário de Andrade sobre o conto ("o conto é tudo aquilo que o autor chama de conto") e afirma que até uma lista telefônica, se puder ser lida pelo leitor como um romance, pode ser, consequentemente, chamada de romance.
Sua preocupação com a fidelidade histórica é, pois, subjacente ao ato de escrever: "Demorei muitos anos para escrever Anatomia..., porque este livro gira em torno de um fato central da história espanhola, sobre o que se há escrito uma infinidade de livros e sobre o qual encontramos uma infinidade de testemunhos. De qualquer forma, a pesquisa é só uma pequena parte de meu trabalho ao escrever um livro; o fundamental, naturalmente, é o processo mesmo da escritura, que é o que idealmente me permite formular de maneira mais complexa possível a pergunta da qual parte o livro".
TRADUÇÕES
Tradutor (assina as traduções espanholas dos contos do inglês H. G. Wells), Cercas diz não se considerar digno da profissão e evitar ler as traduções de suas próprias obras: "Tenho traduzido muito pouco, de forma que não posso me considerar um tradutor. Para minha vergonha, não leio as traduções dos meus livros - às vezes por incapacidade e outras, por outras razões - ainda que respeite enormemente o trabalho do tradutor, que é fundamental e nem sempre é muito apreciado. Seja como for, pelo que sei, as traduções brasileiras são excelentes".
Da visita ao Brasil, onde se sentiu mais à vontade para criticar o nacionalismo europeu, que julga ser o "câncer" do continente, e elogiou a "energia e o otimismo" do povo brasileiro, confessa só guardar boas recordações: "Da Flip só levo boas lembranças, melhor dizendo: boníssimas. Da Flip, de Paraty, e do Brasil em geral".
Sobre os projetos futuros, afirma que pôs o ponto final em um novo romance: "Acabo de terminá-lo e intitula-se As Leis da Fronteira", antecipa Cercas. "Será publicado próximo mês na Espanha e espero que em breve se traduza no Brasil. Será uma ótima oportunidade de voltar ao país".
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