ECONOMIA
Plano Cruzado, projeto de estabilidade do governo Sarney, completa 30 anos
Primeiro pacote econômico após a redemocratização do país pretendia conter a inflação de quase 400% ao ano
Publicado em 28/02/2016 às 8:00
Mesmo sobrevivendo menos de um ano e meio, o Plano Cruzado foi o primeiro pacote econômico pós ditadura militar para conter as fortes taxas da inflação de três dígitos. Marcado pelo congelamento de preços, salários, serviços e pela substituição da moeda, o plano que completa 30 anos neste domingo, causou rebuliços na economia brasileira.
A medida governamental foi lançada pela equipe econômica do presidente José Sarney, em 28 de fevereiro de 1986 e apesar de ter a finalidade de conter a hiperinflação, que ameaçava atingir um índice de 400% ao ano, não empreendeu os meios necessários para alcançar suas metas por longo período. Para especialistas econômicos, o Plano Cruzado teve como um de seus principais algozes a falta de controle dos gastos públicos e momento político desfavorável.
O economista Celso Pinto Mangueira, ex-presidente do Conselho Regional de Economia da Paraíba (Corecon-PB), lembrou que naqueles anos o combate à inflação virou prioridade absoluta para o presidente José Sarney e para detê-la foi editado o Plano de Estabilização Econômica (PEE), mais conhecido por Plano Cruzado, composto por 19 medidas econômicas. Entre elas três tiveram maiores impactos: a extinção da correção monetária, a substituição da moeda brasileira Cruzeiro pelo Cruzado (que valia 1.000 cruzeiros) e o congelamento de todos os preços.
Com a determinação de não haver reajuste de bens e serviços, a população iniciou uma cruzada contra os aumentos e foram convocados a virarem os chamados 'fiscais do Sarney'. As remunerações também foram congeladas pela média dos últimos seis meses e o estabelecimento do salário mínimo em Cz$ 804 (cruzado), o equivalente a US$ 67.
Os salários passaram a ter um gatilho de reajuste disparado toda vez que a inflação ultrapassasse 20% ao mês. Ainda no campo do mercado de trabalho, pela primeira vez foi criado um seguro-desemprego, uma das heranças existentes até os dias atuais.
Economia indexada
Para combater a inflação, o Plano Cruzado previa a desindexação da economia. Com isso, a correção de dívidas anteriores ao anúncio do pacote passou a ser realizada mediante uma tabela de conversão criada pelo governo.
“O Plano Cruzado foi a primeira, entre as várias tentativas de se debelar a inflação, através da extinção da correção monetária e fixação de preços e a que mais se aproximou de ter sucesso com a contenção, em princípio, do aumento contínuo e generalizado dos preços”, ressaltou Celso Mangueira.
Para especialistas, o ‘dragão da inflação’ foi domado por cerca de nove meses. De acordo com Celso Mangueira, com o fim súbito da alta dos preços e a recuperação momentânea do poder aquisitivo da população, a demanda passou a ‘subir de elevador e a oferta de escada’. Isso porque a produção nacional era insuficiente para atender à rápida expansão do consumo. “Era preciso complementá-la com as importações. Como o Brasil era economia fechada, faltou mercadoria, causando uma grave crise de abastecimento”, salientou Pinto.
Em nova crise, o governo Sarney anunciou, em novembro do mesmo ano, o Plano Cruzado II, dias depois das eleições de 1986. O novo plano trouxe o fim do congelamento, o que elevou principalmente os preços das tarifas públicas. No início de 1987, o então ministro da Fazenda, Dilson Funaro, o pai do Cruzado, deixou o governo. Em seu lugar assumiu Luiz Carlos Bresser Pereira, que lançaria o plano que levava seu nome. De novo, viria o congelamento de preços e salários, por 90 dias. Naquele ano, a inflação anual atingiu 415,87%.
Saiba mais
Do ponto de vista histórico, o Plano Cruzado durou mais de um ano, pois ele foi lançado em fevereiro de 1986 e substituído pelo Plano Bresser em julho de 1987, logo após Luiz Carlos Bresser Pereira assumir o Ministério da Fazenda. Mas segundo o presidente do Conselho Regional de Economia da Paraíba (Corecon-PB), João Bosco Ferraz, do ponto de vista da sua eficácia, do apoio político, da euforia da população, da credibilidade e da descoberta do erro de concepção, o Plano Cruzado durou apenas cerca de nove meses, já que ele chegou morto no fim de 1986.
População viveu drama do desabastecimento
O desabastecimento de produtos básicos como carne e leite foi um dos dramas vividos pela população durante o Plano Cruzado. Quando recebiam seus salários, as famílias corriam para os supermercados para comprar o máximo de produtos que podiam e estocavam em casa.
“Para fazer mingau para a minha filha caçula, meu marido não encontrava leite em pó em parte alguma. Então, tinha que usar leite condensado, caso contrário, ela ficava com fome. Nos açougues, a carne verde era escondida e somente quem pagava bem mais caro encontrava o produto. Foram tempos bem difíceis”, recordou a dona de casa Maria Daura da Silva, 63 anos.
Mas o congelamento de preços não durou muito e em alguns meses começou, então, a pressão para o aumento de preço. Segundo o economista Celso Pinto Mangueira, a deterioração da economia voltou a ser uma realidade e, por fim, a volta da inflação que chegou ao final do governo Sarney (1990) com o índice de 1.764,86%.
Outra falha do plano, segundo ele, foi a declaração da moratória técnica do Brasil, em 1987, que secou o crédito internacional completamente e atrasou o desenvolvimento do país por muitos anos.
A economista Amanda Aires, da Devry Brasil, destacou que o congelamento de preços e salários não surtiu muito efeito porque o governo não conseguiu reduzir os excessos nos gastos públicos. “O governo continuava gastando, enquanto o povo sofria com o congelamento. O Cruzado foi a primeira grande tentativa de controlar a hiperinflação no Brasil, mas no momento errado. Além dos erros de execução, a principal dificuldade foi a instabilidade política”, destacou.
Plano mirou mais política que economia
O Plano Cruzado não foi apenas um audacioso plano econômico que não deu certo. O pacote surgiu revestido por rupturas políticas da década de 1980 que impactaram nas mudanças econômicas implantadas pelo ex-presidente José Sarney, substituto do presidente eleito em 1985, Tancredo Neves, que faleceu antes de tomar posse. Para o presidente do Corecon-PB, João Bosco Ferraz de Oliveira, o Cruzado estava muito mais voltado para o resgate da credibilidade política de Sarney do que propriamente para uma recuperação de uma estabilidade financeira do Brasil.
Para se ter ideia da tensão política da época, na cerimônia de transmissão de cargo, em março de 1985, José Sarney não recebeu a faixa presidencial de João Figueiredo, antecessor na liderança do país. Isso porque Sarney assumiu os rumos do Brasil aguardando que Tancredo Neves se recuperasse de uma cirurgia, expectativa que não se concretizou já que Tancredo veio a óbito logo em seguida. “Estávamos saindo de um longo período de governos militares e tínhamos uma grande expectativa de um novo modo de viver no Brasil: um governo civil e pessoas comprometidas em consolidar o regime democrático. Essas eram as nossas esperanças e um fracasso poderia pôr em xeque se realmente os civis estavam preparados para governar o país”, frisou João Bosco.
Segundo ele, o fracasso do Plano Cruzado não traria a volta dos governos militares, mas enterraria a carreira política de muitos 'caciques' que prometeram agir em nome do povo e não em nome de um regime de governo. Isso foi um simbolismo que ficou entrelaçado ao pacote econômico.
Mesmo que a crise econômica não tivesse atingido níveis tão altos, estava programada a aplicação, em curto prazo, de um “plano” econômico para representar uma virada nos modelos até então vigente e definitivamente desassociar-se do regime militar.
E foi justamente as intenções políticas do momento que desviaram parte do foco da crise econômica. E para Bosco, foi essa visão equivocada que levou a uma situação rápida de nova crise, já que a maior parte das medidas lançadas no Cruzado não tinha sustentação e por isso o Plano teve uma vida curta. “Embora de efeito devastador em nossas vidas, que sentimos na pele durante uma boa década”.
Para ele, porém, esta não foi a principal falha do plano e sim a forma como lançaram o congelamento de preços. O governo apostou todas as suas fichas nesse item, segundo Bosco, em detrimento das outras medidas. “Para as famílias e trabalhadores que viveram intensamente àquele período, sempre que se fala em Plano Cruzado o associa logo com o desabastecimento dos produtos nas prateleiras dos estabelecimentos comerciais, inclusive e principalmente de produtos básicos, como carne, leite, ovo e cereais. Essa situação minou de vez a credibilidade do governo perante a população”.
Cruzado deixou legados para país
Para o economista Celso Pinto Mangueira, apesar das críticas e falhas, o Plano Cruzado deixou dois legados para o Brasil: “Extinguiu a conta movimento entre o Banco do Brasil e o Banco Central, que deixou de ser uma instituição de fomento e passou a atuar como um Banco Central clássico; criou as condições e fixou a ideia de que o Brasil poderia vencer a hiperinflação com instrumentos semelhantes (Plano Real)”.
Já para o presidente do Corecon-PB, João Bosco Ferraz de Oliveira a grande lição do governo Sarney foi de como não se deve fazer um pacote econômico. “Faço coro aos analistas que afirmam que o grande legado deixado pelo governo José Sarney foi de uma 'década perdida'. Tivemos uma verdadeira aula de como não se fazer 'planos econômicos'”, destacou Bosco.
Na opinião da professora do Departamento de Economia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Rosângela Palhano Ramalho, apesar do fracasso, o Plano abriu o caminho para que outros governos trabalhassem em prol do combate da alta dos preços. Essas tentativas posteriores, segundo ela, mostram a disposição das autoridades econômicas em discutir e investigar o fenômeno inflacionário, que passou a figurar de forma mais frequente nos debates econômicos.
“Embora pessoalmente discorde dos diagnósticos inflacionários que são lançados até os dias atuais, acredito que a busca por entender o fenômeno nos traga uma resposta ao problema. E o Plano Cruzado lançou o pontapé inicial. Talvez com isto, a Ciência Econômica avance ao ponto de descobrir qual a verdadeira causa da inflação brasileira e o porquê caminhamos na contramão do mundo europeu e americano, que padece do fenômeno da deflação”, analisou.
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