ESPAÇO OPINIÃO
Opinião: O que aconteceu no Rio de Janeiro deve ser preocupação do país inteiro
A jornalista Ana Beatriz Rocha analisa consequências e contextos da operação com dezenas de mortes nas favelas cariocas.
Publicado em 29/10/2025 às 17:15

Eu não senti nenhum cheiro estranho ao acordar na manhã de hoje, parecia tudo normal, no lugar de sempre. Eu não ouvi barulhos atípicos, não vi pessoas correndo nem mulheres, homens e crianças chorando. É que eu não acordei no Rio de Janeiro, não acordei no Complexo da Penha, não amanheci diante de corpos enfileirados em praça pública e rastros de sangue por toda parte.
Durante a madrugada eu não subi o morro, não recolhi os restos de morte da mata para que pudessem, em coletivo, reconhecer rostos e partes de quem se foi. O dia seguinte é a memória viva de um caos que entra, agora, para história do país como um dos dias mais sangrentos de todos os tempos.
No mesmo Brasil que já viu o horror de diversas formas. O Brasil onde as águas salgadas se confundiam com sangue preto trazido de África, num tráfico Atlântico destruidor de humanidade onde homens brancos ordenavam travessias que tornariam nossos ancestrais comida de tubarão. Quem conseguia escapar da morte chegava nos trópicos para morrer um pouquinho a cada dia, a cada açoite, a cada estupro, a cada venda como se mercadoria fossem e a cada ordem carregada de opressão.
Esse mesmo Brasil seguiu usando a morte como política central em diversos outros contextos. Das torturas da ditadura militar ao encarceramento em massa da população negra, passando pela ausência de acessos de saúde, cultura e renda nas periferias onde mora a continuidade do povo que foi escravizado.
‘Fazer morrer’ é algo que nosso país conhece bem, é o que o filósofo e escritor camaronês Achille Mbembe chamou de ‘necropolitica’. Ele acredita que a barbárie é um instrumento de controle para manutenção de um tipo de poder político e social pautado no extermínio de determinados grupos.
Quando as manchetes são preenchidas de dezenas de mortes no morro há um coro que diz: “deu certo, houve êxito, podemos chamar de operação bem-sucedida”. Qualquer comemoração assim é fruto de um completo desconhecimento das raízes e engrenagens dos desafios de segurança pública no Brasil.
É preciso falar, no caso do que aconteceu esta semana no Rio de Janeiro, no despreparo de uma operação que vitimou, inclusive, servidores públicos a serviço da polícia. A cidade em risco numa operação que, com a prerrogativa válida de combater o crime organizado, fez isso de modo mal engendrado com consequências assustadoras.
Entre criminosos, inocentes e policiais militares, o sangue que jorra não resolve. Gera dor, medo, caos na cidade, luto coletivo diante do horror, mas amanhã ou depois o tráfico seguirá forte e estruturado.
As facções criminosas encontraram em gestões despreparadas e oportunistas, por vezes envolvidas com o crime, o combustível necessário para virar Estado paralelo. A força pujante desses grupos está nas negociações econômicas, nos tentáculos atuantes entre empresários e políticos brasileiros, na exteriorização do comércio das drogas, mas são os morros que recebem os disparos.
Pensar em caminhos onde as inteligências dos diferentes órgãos de segurança pública atuem para mirar no poderio econômico dessas organizações parece, aos olhos de diversos especialistas, muito mais efetivo que subir a favela para fuzilar dezenas de pessoas. Desarticular pelas entranhas, enfraquecer negócios, mapear e destituir de poder peças determinantes nas articulações, tudo isso soa mais eficiente.
Na contramão o que vemos é um ‘remember’ aterrador de Carandiru, desta vez a céu aberto, em territórios periféricos formados a partir da resistência de quem sobreviveu a escravidão. Um fazer morrer que comunica o desejo que certos líderes tem de que a necropolitica siga destruindo qualquer sonho de um país que se transforme pela educação e outros direitos fundamentais.
Um alerta para gestores de todo país, visto que as grandes facções estão focadas na interiorização de seus domínios e se espalham com força pelo Nordeste, com impactos alarmantes na região metropolitana de João Pessoa: quais políticas vocês querem fomentar? Quais formas de combate vão aderir? Quais erros vão abandonar em busca de reais soluções?
O que aconteceu no Rio de Janeiro deve ser preocupação do país inteiro.

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