ESPORTES
Em 2014 seja feliz, seja moleque!
Em artigo exclusivo para o JP, o gestor esportivo Gustavo Sousa relembra Graciliano Ramos para focar no ano em que futebol e política cruzam os seus caminhos.
Publicado em 01/01/2014 às 8:00 | Atualizado em 17/05/2023 às 12:20
Em 1921, Graciliano Ramos escreveu uma crônica na qual dizia que o futebol - que na época estava chegando aos sertões do país - não iria “pegar” no interior. Para o escritor, era coisa das capitais litorâneas, moda estrangeira que iria passar depois de causar “um entusiasmo de fogo de palha capaz de durar bem um mês”.
Um dos motivos apontados na crônica era que nossos crianças não se exercitavam. Os meninos são “em geral, franzinos, mirrados, fraquinhos, de uma pobreza de músculos lastimável”, afirmara. Já se vão quase cem anos e hoje é fácil constatar que Graciliano, como se diz na internet, “errou feio; errou rude”. O Brasil virou o “país do futebol”, esporte que hoje em dia é parte indissociável da cultura nacional.
O olhar de Graciliano não era um olhar do centro para a periferia; era uma visão da periferia partindo dela própria: Palmeira dos Índios, onde morava o autor de “Vidas Secas”, está para Alagoas assim como Alagoas para o Nordeste.
Nordeste, que é periferia do Brasil; por sua vez periferia do mundo. Talvez por isso ele não tenha conseguido ver de uma forma mais ampla que não se tratava de mera cópia de um estrangeirismo, mas de uma adaptação. Quem salvou nosso futebol foi o moleque da periferia.
O Brasil era freguês dos vizinhos Uruguai e Argentina. Foi preciso haver a grande migração da população rural para as cidades para que esse moleque da periferia, acostumado aos campos de terra batida e a jogar com bola feita de palha de milho nos sítios (e depois com bola de meia, na cidade), ajudasse a mudar o futebol brasileiro. O menino se misturou ao jogo e transformou o futebol, ele próprio, em um futebol moleque.
A crônica de Graciliano foi esquecida por quase todo mundo, afinal foi uma senhora “bola murcha” do escritor alagoano. Mas o texto não continha apenas uma previsão furada, ele trazia também uma recomendação, cheia de ironia, para que o brasileiro esquecesse o futebol, esporte estrangeiro, e se dedicasse à rasteira, “o esporte nacional por excelência!”: “cultivem a rasteira, amigos! E se algum de vocês tiver vocação para a política, então sim, é a certeza plena de vencer com auxílio dela. É aí que ela culmina. Não há político que a não pratique”.
De lá pra cá, o futebol e a política, seja a política de alto nível ou a política rasteira, insistem em cruzar seus caminhos. Desde 1994, quando todo ano de Copa passou a ser também de eleições gerais, o país vive uma dupla expectativa a cada quatro anos. E os dois eventos que mais mobilizam o país ganharão uma dimensão ainda maior em 2014, com a Copa voltando a ser realizada no Brasil depois de 64 anos. Dentro de campo, ainda podemos torcer para que o futebol-moleque-da-periferia dê suas caras; fora dele, a periferia foi esquecida pela Copa e escondida pela Fifa.
Assim como um jogo de futebol, 2014 terá dois “tempos”: o primeiro tempo vai do início do ano “útil” - ou seja, depois do Carnaval - até meados de julho, e será todo da Copa.
Articulações entre partidos, escolhas de candidatos, convenções...tudo isso passará à margem da inauguração dos seis estádios que ainda estão em obras, da convocação da Seleção Brasileira e da chegada dos craques dos outros países.
(E se o Brasil for campeão, esse primeiro tempo ainda terá alguns dias de acréscimos).
O segundo tempo será dedicado à temporada de caça aos eleitores. Começa oficialmente em 1º de julho, quando todos os candidatos já estarão legalmente definidos, mas vai esquentar mesmo depois da Copa, com o início do horário eleitoral no rádio e na TV. Seu ápice será no dia das eleições, 5 de outubro.
E se o jogo eleitoral precisar de prorrogação, o segundo turno será três semanas depois, no dia 26.
Mas 2014 guarda outra expectativa. Essa, nem os comentaristas de futebol nem os articulistas políticos podem prever direito. É que o grande lance deste ano acontecerá na verdade entre o primeiro e o segundo tempo. No “show do intervalo” de 2014, a possibilidade de uma nova onda de protestos é que será o elo que unirá futebol e política, Copa e eleições.
Nas eleições não haverá discussão sobre como foi o Brasil na Copa, mas sim sobre como foi a Copa no Brasil. A periferia, esquecida pela Copa, será novamente lembrada pelos políticos nos debates. A seleção de temas é fácil e a base é a mesma escalação de todos os anos: o time começa com a corrupção, no gol. A zaga é composta pela falta de saúde, transporte e educação. No meio, atrasos nas obras, acidentes, superfaturamento, desvio de dinheiro e abuso de poder. Na frente, o tal legado mágico (infra-estrutura e mobilidade urbana), que insiste em não dar as caras. E no banco o país ainda pode contar com o caos aéreo, o aumento da inflação e as notícias de violência pipocando no exterior, que podem entrar a qualquer momento.
Se por um lado o povo não deu bola ao texto de Graciliano Ramos, e tornou o futebol paixão nacional, alguns políticos seguiram a recomendação direitinho, se dedicaram à rasteira e ainda fizeram de nós suas vítimas preferidas. Mas “a regra é clara”: assim como no jogo, na política também o carrinho por trás é “falta pra cartão”. O que falta mesmo é você lembrar que - seja protestando, seja votando - o juiz é você. Em 2014, seja feliz, seja moleque!
Comentários