ESPORTES
O mundo sonhou que eu era argentino
O dia em que Messi fez um brasileiro querer o título dos hermanos na Copa do Mundo.
Publicado em 19/12/2022 às 10:12 | Atualizado em 18/04/2023 às 15:09
Hoje eu acordei e logo lembrei de um sonho. O mundo havia sonhado que eu era argentino. O sonho era um dia que pareceu ter durado décadas. Acontece mesmo isso em sonhos. A chuva caía do mesmo jeito e eu a sentia igual. Como sempre. O abafado depois das gotas era o mesmo de sempre da minha João Pessoa. Mas eu era argentino. O mundo sonhou que eu era argentino.
As mazelas continuavam por aí. A pobreza. A fome. Os rios continuavam morrendo de sede. Inflações e economias em crise estampavam manchetes, rostos e vidas. Parecia tudo muito igual, mas era tudo muito diferente. Afinal, eu era argentino. O mundo tinha sonhado que eu era argentino.
Eu senti angústias e palpitações. Coisas dentro da gente que não me fazem bem e que tenho convicção de que não gosto e não quero mais sentir. Mas também gozei de sensações de bem-estar. Como se vivesse dez anos em um só dia. E, como eu era argentino, eu amava Messi. Em pouco menos de um dia, eu o vi brilhar no Barcelona jovem, depois maduro. Ri com lances lindos, comemorei vitórias do Barça e da Argentina. Vi ele se transferir para o PSG. Vi ele querer largar a seleção. Vi ele levar a Copa América contra o Brasil em pleno Rio de Janeiro.
Vi ele abatido. Exaltado. Questionado. Vi ele dividir com Cristiano Ronaldo e Maradona comparações que viajavam no tempo. Tudo isso aconteceu em menos de um dia, quando o mundo sonhou que eu era argentino.
Andei pela cidade, no sonho, e ela era a mesma de sempre. A minha. Minha brasileira João Pessoa. Mas o mundo sonhou que eu era argentino, e na rua havia vários argentinos. Muita gente torcendo pelo tri e, muitas vezes, só por Messi, para ele, enfim, conquistar a Copa do Mundo e, depois de tudo que viveu, e que vi, tirar o peso de um planeta das suas costas.
Muita coisa era igual. Havia egoísmo, violência e o pior do ser humano nesse sonho. Havia o pior da existência. Havia crianças morrendo, doentes. E mães também. Mistério profundo.
Achei que era um pesadelo. Mas era um sonho. A estranha narrativa me agoniava. Comecei a chorar, depois sorria. Tudo muito veloz, diferente, imprevisível. Como Messi. Que chegava a uma final de Copa do Mundo novamente. Já havia perdido uma. Tudo isso passou em segundos nesse sonho do mundo em que eu era argentino.
Havia novos guerreiros. Fieis escudeiros de um legítimo capitão que sempre se impôs e deu ordens com os pés. Era um sonho. Então tudo ali fazia e não fazia sentido. Houve um empate por 3 a 3 com a França. Numa final de Copa. Eu disse, foi algo esquisito a todo momento. Eu comecei a ficar desesperado. E lembrava dos desesperos anteriores. A cada derrota. A cada lágrima dele. A cada pênalti que ele ia bater. A cada gol que ele fazia, e a França empatava.
Surgiu seu Sancho Pança. Dibu Martínez. Um goleiro. E eu senti que eu começava a controlar o sonho. Sabe quando a gente passa a fazer o que quer com o que está sonhando? Coisa rara. Mas acontece. Até aí era o mundo que controlava a narrativa. Agora não mais. Peguei as canetas e escrevi o que eu queria. Nos pênaltis, Messi fez o dele e Dibu pegou dois. Como eu era argentino, foi isso que eu escolhi. A Argentina ganhou o tri. Messi carregou sua seleção a essa conquista. Era o que nós dois queríamos.
Rapidamente eu estava novamente numa rua da minha cidade. No meu bairro. Andei um pouco. E vi vários problemas nas pessoas, nas ruas, vias e vielas. Parecia que o futebol era a única intervenção humana que havia dado certo. Ainda argentino, no sonho, quase que com toda a imagem que até ali era nítida, se esvaindo para uma tela preta de um olho fechado ou para um feixe de luz agressivo de um olho recém-aberto, senti, talvez inocentemente, que depois de tudo isso, o mundo parecia ensaiar querer ser mais justo.
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