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QUAL A BOA?

O paraibano José Siqueira foi grande personagem da música brasileira silenciado pela ditadura militar

Publicado em 28/06/2021 às 5:34 | Atualizado em 22/06/2023 às 12:50

O documentário Toada Para José Siqueira conta a história de um dos grandes músicos eruditos brasileiros.

Um dos maiores. Ele foi silenciado pela ditadura militar.

Nesta segunda-feira (28), abro espaço na coluna para que a professora paraibana Josalba Ramalho Vieira, sobrinha-neta do extraordinário compositor, comente o filme num texto que mistura a análise do conteúdo com fragmentos da sua memória afetiva.

IMPRESSÕES SOBRE TOADA PARA JOSÉ SIQUEIRA

Josalba Ramalho Vieira

Toada, substantivo feminino com diversos significados. No documentário de Rodrigo Marques e Eduardo Consonni, pode-se afirmar que o termo se enche de sentidos e vai além. Assisti à estreia do doc em casa de minha irmã Josélia Vieira, a pianista, celista e professora de piano da UFPB com extenso conhecimento familiar e acadêmico sobre Siqueira, nosso tio-avô do lado materno. Após resolver um problema técnico de som Josélia diz muito feliz, com a autoridade de quem já tinha visto vários cortes do filme e de quem participou intensamente como consultora musical e na produção local na Paraíba, disse: "Escute! Tem som! É o som da fogueira!" O crepitar do fogo na abertura do filme traz, nesse momento, o primeiro significado de toada: aquilo que é captado pelo sentido da audição; ruído, som.

A escolha dos cineastas de contar a história do compositor, regente e professor paraibano, nascido em Conceição do Piancó, a partir dos relatos, cartas, e registros do próprio José Siqueira e de usar a primeira pessoa durante todo o filme, que é narrado e interpretado magistralmente pela voz do ator Fernando Teixeira, foi mais que acertada. Dar voz e vez a este grande personagem da história da música brasileira, apagado e silenciado pela ditadura militar, é a nobre missão desse filme.

Ao escutar a narração sobre as primeiras lembranças de Siqueira do mês dos folguedos de junho em Piancó, mês do seu aniversário e do lançamento do documentário, começou na minha mente uma sobreposição ao que vinha na tela. Nesse lugar da memória, as histórias de minha mãe e de minha tia sobre tio Siqueira emergem fortes em mim. Aqui um outro sentido de Toada se colocava: o que se conhece por se ouvir dizer muitas vezes. Ou seja, essa história que surgiria no doc, pensei eu, já conhecíamos de toada, porém não toda, e não contada por Siqueira e nem tão póetica e musicalmente montada pelos cineastas Rodrigo e Eduardo.

A extensão, o detalhamento, a riqueza e a precisão da pesquisa realizada pelos cineastas e sua equipe, no Brasil e no exterior, foi algo que me impressionou sobremaneira durante todo o documentário. A forma viva de apresentar as composições do maestro foi emocionante e memorável. Mostrar os relatos das visitas etnomusicais de Siqueira à Paraíba e a outras cidades do Nordeste brasileiro conectando-os às composições eruditas trouxe um fluxo orgânico para o roteiro. O espectador vê a terra, as gentes e a música popular ao mesmo tempo que entende os mecanismos de pesquisa do compositor erudito. Os acervos recuperados das viagens de Siqueira são de riqueza incalculável.

Outra decisão importante e eficaz do roteiro foi fazer a amarração da história seguindo a cronologia da vida de José Siqueira, pois este músico tinha o dom de estar presente ou envolvido com todos os eventos mais importantes do século 20. Siqueira também é uma figura pública que foi muito presente e ativa na defesa dos músicos do Brasil, criando inclusive a União dos Músicos do Brasil e depois a Ordem dos Músicos do Brasil. No entanto, sua força, generosidade e grandiosidade foram perseguidas. O regime militar e ditatorial de 1964 irá proibi-lo de reger, ensinar e de tocar suas composições no país. O famigerado AI-5, pelo qual ele é aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é um forte golpe contra o maestro e contra o país e o atinge em cheio. O trecho do filme que trata da perseguição imposta pelo regime militar, além de trazer uma vasta documentação desta tirania, traz uma profunda tristeza por ele, por nós, pela música, pelo nosso país. A sequência de imagens do rosto do maestro em um negativo de filme antigo que vai pouco a pouco se apagando até desaparecer é uma obra-prima dentro do documentário.

Contudo, o filme traz as ideias de Siqueira vivas e pulsantes no cenário musical da Paraíba e do Brasil do século XXI. Suas composições são executadas no filme pela Orquestra Jovem da Paraíba; pelos alunos do PRIMA (projeto de inclusão pela música do Governo do Estado da PB) espalhados pela PB inteira; e pela Orquestra da UFRJ. O sonho de Siqueira em ver orquestras espalhadas pelo Brasil, nós presenciamos. A esperança de que a música erudita chegue a todos, nós testemunhamos. A luta para ter suas composições vivas e tocadas livremente no país, nós não deixaremos morrer. Ao final da exibição eu me perguntei:  Esse foi um documentário? Um concerto? Um folguedo? Uma saga? Uma história de família? Para mim, foi tudo isso e foi também uma lufada de esperança em nós mesmos!

*****

Josalba Ramalho Vieira é doutora em Linguística Aplicada pela Unicamp e professora titular aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). 

Imagem

Silvio Osias

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