SAÚDE
Maconha medicinal: médicos se dividem após nova resolução do CFM sobre prescrição; entenda
Nova resolução prevê que a cannabis seja receitada apenas para tratar quadros de epilepsia; medidas jurídicas estão sendo tomadas e decisão pode ser revertida.
Publicado em 19/10/2022 às 15:10
Uma nova resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), publicada na última sexta-feira (14), restringe que medicamentos produzidos a partir da cannabis sejam receitados apenas para tratar alguns quadros de epilepsia. Na prática, por enquanto, alguns médicos seguem prescrevendo a substância, também conhecida como maconha medicinal, para diversos tratamentos, como transtornos de ansiedade e fibromialgia, uma vez que medidas jurídicas estão sendo tomadas e a decisão ainda pode ser revertida.
Caso se concretize em última instância, a medida pode afetar diversos pacientes que fazem uso da cannabis medicinal para o tratamento de outras doenças, como é o caso da gastróloga Camila Moraes, que tem transtorno de ansiedade generalizada (TAG) e usa o medicamento há 6 anos.
“Eu preciso fazer o uso do óleo rico em THC para ter o controle das minhas crises. O meu tratamento é diretamente afetado por essa decisão porque a partir do momento que um médico prescreve a substância que eu preciso no meu tratamento, ele corre o risco de ser punido, apenas por ter livre arbítrio de escolher o meu tratamento junto comigo. O tratamento que é melhor para minha qualidade de vida”, disse Camila Moraes em entrevista à rádio CBN Paraíba.
De acordo com Bruno Leandro de Souza, diretor de Fiscalização do Conselho de Medicina da Paraíba (CRM-PB), a norma entrou em vem vigor na data da sua publicação. Portanto, os médicos que preescreverem a substância fora da norma podem ser denunciados. "Em caso de comprovação de infração ao código de ética médica, podem ser processados. Após dado amplo direito de defesa, sendo compreendida a infração, podem ser punidos de acordo com a gravidade da infração", afirmou Bruno ao JORNAL DA PARAÍBA.
Segundo o diretor, "o CFM se manifesta defensor das pesquisas com quaisquer substâncias ou procedimentos para combater doenças, desde que regidos pelas regras definidas pelo Sistema CEP/CONEP e desenvolvidos em centros acadêmicos de pesquisa. A aplicação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido é fundamental como maneira de expressar o respeito à autonomia dos pacientes e de ressaltar as obrigações dos médicos e pesquisadores".
Além disso, o texto ainda proíbe a prescrição de qualquer outro derivado da cannabis, como a sativa, por exemplo, que é usada para aliviar os sintomas de pacientes com fibromialgia. Em todo o mundo, há diversas doenças que já têm terapias com base na cannabis, desde transtornos do espectro autista, até depressão e ansiedade. A nova resolução também inviabiliza a receita para utilização do metavyl, único medicamento à base de substâncias da cannabis aprovado no Brasil. Ele é utilizado para o tratamento da esclerose múltipla.
O advogado Arthur Ângelo, que faz parte da Comissão de Direitos Humanos (OAB-PB), explica que medidas jurídicas estão sendo tomadas e que decisão pode ser revertida. “A resolução trouxe receio aos pacientes e a alguns profissionais da medicina, mas já há medidas jurídicas sendo tomadas contra a resolução”.
“Além disso, diversos médicos e médicas se colocam em desobediência à normativa e reiteram que continuarão receitando e prescrevendo. A posição é amparada pelo código de ética médico. Então há disputa e espaço, inclusive, para a judicialização de ação constitucional no STF”, explica o advogado.
Diante desse cenário, os profissionais de medicina correm algum risco de processo administrativo nos conselhos regionais, mas, segundo o advogado, estão amparados na liberdade profissional do código de ética médica disposta no capítulo I, inciso VIII. “É uma disputa jurídica aberta a argumentações”, afirma.
Veja opiniões dos profissionais de medicina
Contra a resolução
Os profissionais de medicina Úrsula Catarino e Gustavo Dias, que também atuam com a prescrição da cannabis medicinal, são contra a decisão. “A resolução marca um posicionamento claro e não fundamentado, a não ser ideologicamente. Representa um retrocesso, colocando em risco milhares de pacientes em tratamento e em insegurança jurídica os médicos que os acompanham”, dizem em manifestação nas redes sociais.
“Como ficarão as milhares de famílias que obtiveram finalmente qualidade de vida a partir do tratamento com a Cannabis e/ou derivados e não se enquadram nas condições impostas pelo CFM? Como ficarão os médicos e médicas que, respaldados pela RDC 335 da ANVISA, hoje já prescrevem para outras condições clínicas já embasadas cientificamente e em respeito ao Código de Ética Médica?”, escrevem.
Úrsula Catarino, que é médica sanitarista e prescritora de cannabis medicinal, se sente insegura, mas afirma que não deixará seus pacientes sem assistência. “Somos todos prejudicados. Por exemplo: como ficam os pacientes que eu já acompanho por outras situações que a resolução não abrange? Serei punida se continuar acompanhando? Como serão para os novos pacientes? E os cursos já programados? Serei punida?”, indaga a profissional.
Não deixarei meus pacientes sem assistência. Muitos médicos estão abandonando seus pacientes".
“Estamos todos apreensivos, mas nos mantendo firmes garantindo acesso à saúde”, diz Ursula.
A favor da resolução
O médico André Telis explica que, para um novo medicamento ser usado no país, é necessário haver estudos clínicos em fase 3 já aprovados, o que faz a Anvisa recomendar o uso da medicação. “O CFM se debruçou sobre diversas publicações ocorridas entre dezembro de 2020 e agosto de 2022 e conclui que existem ensaios clínicos fase 3 e a própria Anvisa liberando canabidiol para crises convulsivas. Mas tem vários outros estudos negativos para outras situações clínicas”, explica o médico.
“O CFM julgou que só existem protocolos clínicos aprovados para esses usos em epilepsia e que outros usos extrapolam o que a legislação brasileira recomenda. Por isso que essa restrição. Lembrando que o uso do canabidiol não foi proibido, mas que em outras situações que não esses casos de síndromes convulsivas, que sejam em protocolos de pesquisa em fase 3, que tenham deliberação do Conselho Nacional de Saúde (Conep), que é um órgão da Anvisa”, avalia André Telis.
O psiquiatra Charlles Lucena também concorda com a decisão. “Muito importante que sigamos as indicações da resolução da CFM, visto que a decisão foi tomada a partir da análise de diversos estudos científicos que trouxeram dados mais conclusivos em relação ao usos atuais da cannabis”.
De acordo com o profissional, o que se observa atualmente é uma “super prescrição” da cannabis, “inclusive para fins ao qual não existe ainda uma indicação terapêutica firmada e segura”, afirma. Em relação à psiquiatria, “não há uma indicação clínica hoje formal que justifique a prescrição de cannabis. Acredito que a partir de agora vai haver uma fiscalização mais efetiva e uma avaliação mais criteriosa”, diz o psiquiatra.
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