SAÚDE ALERTA
Microcefalia e Zika: a descoberta que transformou a medicina
Um relato pessoal da médica e pesquisadora Adriana Melo, que fez a descoberta da relação entre as doenças.
Publicado em 04/12/2024 às 12:51
Ao ver fetos com cérebros malformados em 2015, senti um impacto profundo, algo que me tocou como médica, como cientista e, sobretudo, como ser humano. Cada imagem de ultrassom era como um grito de alerta, uma evidência de que algo muito grave estava acontecendo. Aquelas imagens não eram apenas resultados diagnósticos; elas representavam vidas marcadas por uma condição ainda misteriosa. Foi impossível ignorar a angústia das famílias e a necessidade de respostas que pudessem explicar o que estava por trás dessa tragédia.
Os desafios que enfrentei foram imensos. Com poucos recursos para pesquisa, precisei agir com as ferramentas disponíveis. Realizar a coleta do líquido amniótico e investigar as causas dessa tragédia em uma clínica privada foi uma decisão que reflete a realidade de muitos profissionais fora dos grandes centros de pesquisa. Não havia laboratórios equipados ou equipes multidisciplinares prontas para colaborar comigo. Mas havia determinação, senso de urgência e a vontade de fazer a diferença. A decisão de prosseguir com essa investigação, mesmo diante das limitações, foi motivada pela necessidade de trazer respostas para as gestantes e bebês que confiavam em nós. As parcerias com grandes pesquisadores possibilitaram a finalização de alguns artigos científicos que foram publicados em revistas internacionais de grande impacto, alguns sendo premiados.
Ainda assim, o preconceito foi um obstáculo constante. Mesmo tendo dois doutorados e um pós-doutorado, sentia o peso de ser uma médica paraibana, de trabalhar em condições que muitos consideravam inferiores às de grandes centros acadêmicos. Fui muitas vezes olhada com desconfiança, como se minha origem geográfica e minhas condições de trabalho invalidassem minha capacidade de produzir ciência de qualidade. Os questionamentos que recebi pareciam muitas vezes mais direcionados à minha legitimidade como pesquisadora do que à validade dos resultados que eu estava apresentando.
A descoberta da relação entre o Zika vírus e a microcefalia foi um marco, não apenas para a ciência, mas para minha própria trajetória como médica e pesquisadora. Realizar essa descoberta em meio a tantas adversidades mostrou que a excelência científica não é exclusividade dos grandes centros e que o compromisso com a medicina transcende barreiras geográficas e preconceitos. Esse trabalho destacou que médicos e cientistas de qualquer lugar, quando movidos pela ética, pela paixão e pelo desejo de mudar vidas, podem contribuir significativamente para o avanço do conhecimento e para a saúde global.
No entanto, as dificuldades não terminaram com a descoberta. Recebi verba de pesquisa apenas em 2017, quando os casos de Zika congênita já haviam praticamente desaparecido na nossa região. Esse atraso no financiamento foi um golpe duro. Durante os momentos mais críticos da epidemia, trabalhamos com recursos limitados, improvisando, fazendo o que era possível para seguir investigando. Essa demora refletiu a falta de valorização da ciência em nosso país, especialmente da ciência feita fora dos grandes centros. A ausência de apoio adequado no momento certo prejudicou o andamento das pesquisas e, muitas vezes, minou minha motivação. Houve momentos em que pensei seriamente em desistir, em abandonar o caminho da pesquisa científica. É difícil sustentar o entusiasmo quando você sente que o suporte e o reconhecimento chegam tarde demais, quando a urgência já passou e as oportunidades foram perdidas.
Apesar de tudo, houve também momentos de reconhecimento e gratidão. Após a descoberta, fui honrada com prêmios como o Faz Diferença, concedido pelo jornal O Globo em parceria com a Firjan, na categoria Personalidade do Ano. Além disso, recebi homenagens em eventos científicos e de saúde pública em vários países. Um dos momentos mais marcantes foi receber o título de Honorary Fellow of the American Institute of Ultrasound in Medicine (AIUM). A carta enviada pelo Dr. Brian D. Coley, presidente da AIUM, convidando-me para a cerimônia em Nova York, foi um reconhecimento especial. Lembro-me das palavras da carta, que expressavam o respeito por minhas contribuições significativas ao campo do ultrassom. Aquilo simbolizou não apenas um momento de validação científica, mas também uma vitória pessoal contra os preconceitos e adversidades.
Outro momento que foi extremamente impactante foi receber o prêmio Stuart Campbell, em 2017, em Viena. Ser aplaudida de pé por cerca de cinco minutos por uma plateia de 2500 especialistas do mundo inteiro foi inesquecível. Recebi ainda um texto intitulado "UMA HEROÍNA BRASILEIRA PREMIADA INTERNACIONALMENTE PELO SEU TRABALHO SOBRE ZIKA VIRUS".
Mas havia um desafio ainda maior que ia além das descobertas científicas: garantir a melhor assistência possível às crianças e suas famílias. Conviver com a dor das mães foi uma das experiências mais difíceis. Muitas vezes, elas chegavam desesperadas, buscando explicações e, principalmente, esperança. Mas, diante de uma condição nova e pouco compreendida, nem sempre era possível oferecer respostas claras ou soluções imediatas. Além disso, muitas dessas mães não tinham suporte emocional, social ou financeiro adequados para lidar com o impacto devastador de uma gestação marcada pela incerteza e, posteriormente, pelo diagnóstico.
O contexto em que essas famílias viviam tornava tudo ainda mais desafiador. Em uma região com limitações de recursos, onde o acesso a tratamentos especializados era restrito, a sensação de impotência era algo que precisava ser enfrentada diariamente. Não bastava identificar o problema; era necessário buscar alternativas para minimizar o sofrimento, tanto das crianças quanto das suas famílias. As mães, em especial, carregavam uma dor que muitas vezes ia além da perda do ideal de um bebê saudável. Elas enfrentavam o medo do futuro, a falta de suporte da rede pública e o estigma social, que frequentemente as culpabilizava por algo que estava muito além do controle delas.
Como médica, era minha responsabilidade oferecer o melhor cuidado possível, mesmo diante de tantos desafios. Era preciso assegurar que aquelas famílias recebessem não apenas um diagnóstico, mas também acolhimento, orientação e suporte. Na ausência de políticas públicas robustas ou de uma rede de apoio bem estruturada, buscamos criar, na medida do possível, um espaço de acolhimento, onde essas mães se sentissem amparadas. Isso, muitas vezes, envolvia estar presente para ouvir, segurar suas mãos e compartilhar a dor delas, mesmo quando não havia respostas imediatas.
Essa convivência diária com a dor e a resiliência dessas mulheres moldou minha atuação. Compreendi que a ciência não pode estar desconectada da empatia e do cuidado humano. Cada passo da pesquisa foi realizado com o objetivo não apenas de entender o Zika vírus e sua relação com a microcefalia, mas também de proporcionar uma base para que outras mães e famílias pudessem ser melhores atendidas no futuro.
Foi difícil. A carga emocional era enorme, e não foram poucas as noites em que me perguntei se estava fazendo o suficiente. Mas o compromisso com essas famílias e com a ciência me deu forças para continuar. A dor que presenciei se tornou um combustível para buscar respostas, mesmo diante de recursos limitados, preconceitos e da falta de suporte institucional.
Esse aspecto da minha trajetória reforça o quanto o trabalho científico e a prática médica não podem ser dissociados da humanidade. Não se trata apenas de descobrir, mas de cuidar, de estar presente e de lutar por melhores condições para aqueles que mais precisam. E, acima de tudo, trata-se de lembrar que, por trás de cada dado e descoberta, existem histórias reais, mães, crianças e famílias que merecem todo o nosso esforço e dedicação.
Esses reconhecimentos não apenas validaram o trabalho árduo e os desafios enfrentados, mas também trouxeram visibilidade para a ciência desenvolvida no Nordeste brasileiro, inspirando outros profissionais a persistirem em suas pesquisas, mesmo diante de adversidades.
*Texto escrito por Adriana Melo
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