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VIDA URBANA

Quando o som da música faz cessar tiros e sirenes policiais

Projeto ‘Uma nota musical que salva’ vem ajudando a mudar realidade violenta de crianças de Mandacaru, em João Pessoa.

Publicado em 02/11/2016 às 16:40

Mandacaru, João Pessoa. Um adolescente de 16 anos some, deixando a família em desespero. Era março de 2011. Telefonemas, buscas em hospitais, pedidos de ajuda. Nenhuma notícia, nem sinal do jovem. Os dias se passam e a angústia dos familiares aumenta, à medida que a esperança diminui. É quando no oitavo dia após o desaparecimento uma das gavetas do Instituto Médico Legal (IML) mostra a imagem que ficaria guardada na mente da funcionária pública Lauricea Rodrigues: o sobrinho assassinado com vários tiros. O envolvimento dele com traficantes da região teria sido responsável pelo trágico desfecho.

Três meses depois. Mais um rapaz desaparece no bairro. Telefonemas, buscas em hospitais, pedidos de ajuda. Nenhuma notícia, nem sinal do jovem. Era outro sobrinho de Lauricea, que ainda se recuperava da primeira perda. Angústia, desesperança. Horas mais tarde, o telefone toca. A informação é de que ele havia sido encontrado morto com seis disparos de arma de fogo em um local conhecido como Beira da Linha, na mesma comunidade. O retrato do corpo estendido no chão, rodeado por curiosos e familiares aos prantos, era a tradução de mais um recado dos traficantes.

Lauricea estava em choque. Duas memórias marcantes, duas vidas abreviadas. Que tipo de realidade era aquela?, questionava ela. Como os jovens do bairro poderiam ter qualidade de vida e um futuro digno, se viviam cercados de dramas cotidianos como aqueles? Transformando o luto em força, Lauricea decidiu agir. Inquieta e convicta, conversou com o marido, reuniu amigos e, com recursos próprios, teve a ideia de criar um projeto para salvar outras crianças e adolescentes do mesmo destino que os sobrinhos. A música, segundo ela, seria o meio, um sopro para as perspectivas sufocantes de Mandacaru. Nascia ali a ONG 'Uma nota musical que salva'.

Pontapé inicial

O início do trabalho se deu na rua, entre meninos e meninas que, com os pés descalços no asfalto e na terra, jogavam bola e soltavam pipa. “Comecei perguntando o que achariam de ter um projeto aqui em que pudessem cantar, tocar, se apresentar nos palcos, aparecer na TV, receber aplausos, dar orgulho para a mãe”, recorda Lauricea, que, a partir das respostas assertivas, conseguiu mais de vinte jovens. O plano dela ganhava cores. Com integrantes dispostos e cheios de energia, faltavam apenas os instrumentos e alguém apto para ensinar os acordes básicos, acordes estes que mais tarde poderiam fazer cessar os sons dos tiros e das sirenes das viaturas, tão frequentes na comunidade.

Para conseguir comprar o que faltava, uma rifa com itens arrecadados entre os comerciantes da região foi a saída encontrada por Lauricea. E o sucesso foi tanto, que a vizinhança, empenhada em colaborar com o crescimento da ONG, tornou possível um montante suficiente para adquirir sete violões e para confeccionar camisetas para cada integrante. Voluntários interessados em dar aulas também foram surgindo e, quando menos esperava, a funcionária pública já tinha basicamente o que precisava para colocar em prática aquilo que havia idealizado. Era o prelúdio dos bons frutos que viria a colher.

Polícia para quem precisa de polícia

Por ser atuante na comunidade, durante o período em que lutava para fortalecer sua iniciativa, Lauricea foi convidada para um curso de policiamento solidário com a Polícia Militar. “Na época, eu relutei porque se envolver com a polícia aqui é pedir parar morrer, mas acabei aceitando”, explica, ressaltando que mal sabia que aquilo mudaria o rumo de seu projeto. “No final do curso, o coronel colocou todos ali para falarem sobre as expectativas de vida. Alguns disseram faculdade, outros, viagens. Quando chegou a minha vez, eu disse ‘eu só quero montar uma escola de música no bairro onde vivo porque não aguento mais a violência’. A sala inteira parou e ficou em silêncio”.

E o silêncio que parecia indiferença, se mostrou um sinal de aprovação. Dias depois, Lauricea foi surpreendida com a visita do coronel que, para contribuir com o sonho dela, colocou o aparato da PM à disposição da ONG. “Ele disse ‘Lauricea, desculpa ter vindo assim, eu sei que é um risco para você, mas vim porque precisava trazer algumas coisas. Fiz alguns ofícios, baseado no que você disse e, para o dia da inauguração do projeto, vamos conseguir trazer a banda da polícia, o canil da PM, o BOPE [Batalhão de Operações Policiais Especiais]’. O coronel fez um esquema tão grande, que veio até o prefeito [Luciano Agra] cortar uma fita”, lembra Lauricea.

Sirenes de bem

Tanto agito em Mandacaru chamou a atenção da mídia, que se questionou sobre o que estava acontecendo. Programas de TV, transmissões de rádio e redações de portais. Todos correram para tentar descobrir o motivo para a comoção. As viaturas, que antes denotavam violência, naquela altura significavam outra coisa: o apoio à construção de uma nova realidade para as crianças e adolescentes do bairro. Lauricea, com a sensação de estar no rumo certo, riu com a ironia de ver sua comunidade aparecer, pelas mãos da própria polícia, de forma positiva. A ONG 'Uma nota musical que salva' ganhava seu espaço.

Conforme ela, a PM entraria em cena muitas outras vezes durante a trajetória do projeto. Isso ao auxiliar no transporte das crianças, ao convidá-las para se apresentar e, principalmente, ao ceder um de seus músicos como professor: o subtenente Edilson Alves Pequeno. Há 25 anos na corporação, ele acompanha a ONG há quatro e dá aulas duas vezes na semana. “Ser voluntário em um projeto social é ter sede de justiça, sede de inclusão”, menciona o oficial. “Vejo nessas crianças a necessidade de alguém para ensinar, além da música, a cidadania. E elas têm um grande futuro, é uma semente boa que estamos plantando”.

Subtenente Edilson Alves Pequeno é voluntário no projeto há quatro anos, ensinando iniciação musical para as crianças e adolescentes (Foto: Phillipe Xavier)

Uma segunda mãe

“Eu aprendo diariamente com eles que é preciso ter força, principalmente na hora que penso em desistir”, diz Lauricea. Para superar obstáculos, tanto da realidade humilde, que às vezes aparecem como problemas financeiros, quanto da saúde, que se apresentam em forma de cansaço físico e mental, ela busca motivação no carinho dos quarenta jovens que atualmente fazem parte do projeto e das doações. “Quando a gente quer desistir, chega um doador anônimo, bate na porta e surpreende”, frisa, apontando para a última contribuição recebida no dia anterior: um teclado, outro dos trinta instrumentos que a ONG já conquistou.

Mãe, amiga, protetora e 'psicóloga'. O papel de Lauricea ultrapassa os muros de sua casa, onde funciona o projeto. Com os jovens, ela faz questão de acompanhar não apenas os estudos, mas a postura no dia a dia e o relacionamento com as próprias famílias. “Tem vezes em que a criança chega, eu sento com ela pra conversar e ela começa a chorar”, relata. “Vendo isso, eu já sei que ela está com problemas, até porque se você observar mais a fundo, na realidade, ela faz parte de um lar todo desestruturado”, complementa, afirmando já ter lidado com histórias fortes de agressividade, de depressão e até de abandono.

Uma delas, inclusive, tinha tudo para ter um final infeliz: o caso de um dos meninos que fazia parte do projeto, mas que era negligenciado pela mãe, envolvida com o tráfico de drogas. “Ficamos com ele, acertamos que iríamos pedir a guarda, mas em dezembro a mãe ligou pedindo para o menino passar o Natal com ela e, quando entramos em contato de novo, ela havia mudado o número de telefone e ido embora com ele”, revela. “Certo dia soubemos que ele estava na praia, usando solvente. A Justiça o levou, o internou em um abrigo, ele fugiu, mas recentemente foi adotado por outra família e está bem, estudando música novamente. Conversa até comigo no Facebook”.

Firme e forte

Outra história que traz conforto a Lauricea é a da jovem Alice Agostinho, de 14 anos. Vivendo com a mãe e os três irmãos em uma casa de um cômodo só, sem banheiro, a menina descobriu no projeto a paixão pela música e uma forma de superar a triste realidade. Com passos firmes e certeiros, mesmo caminhando todos os dias durante longos minutos para chegar à sede da ONG, ela diz não pensar em nada além de se tornar uma musicista famosa. “Eu toco dois instrumentos hoje, a flauta e o clarinete, e quero aprender mais para ser uma boa profissional quando for maior”, admite orgulhosa.

A mãe da menina, a manicure Adriana Agostinho, é quem observa tudo atentamente. Ciente das dificuldades que vive, mas, ao mesmo tempo, sempre preocupada com os filhos, que frequentam o projeto há quatro anos, ela ressalta que encontrou em Lauricea e no 'Uma nota musical que salva' o apoio que precisava. “Posso estar cansada, mas venho todos os dias aqui, feliz e contente da vida. Não tem tempo ruim para mim”, comemora ela, que sonha em ver Alice, a filha que mais tomou gosto pela arte, nos palcos do mundo. “Eu já vejo ela se apresentando por aí. Quero ver todos eles crescendo e sendo alguém”.

Brigas nunca mais

Uma vivência baseada na defesa, na resistência à aproximação. Eram assim os dias de Airam Melo, de 13 anos. Um desafio para Lauricea, que buscava maneiras de mudar o comportamento do jovem, assim que ele chegou ao projeto. “Eu pensava: ‘como vou ajudar esse menino?’. Se continuar desse jeito, não vai muito longe”, conta ela, que tentava refletir sobre as origens do problema e as melhores formas de abordagem. “Apesar de a família ser unida, isso vem muito da rua, do local mesmo, de um vendo o outro, crianças soltas, que não têm o contato com a mãe, que passam o dia todo ou apanhando ou dando no outro. Eu queria reverter isso”.

Foram as conversas sobre o futuro e o engajamento nas atividades que vieram como solução. “‘O que você quer para a sua vida? Você quer terminar estirado com uma bala na cabeça ou dar uma vida melhor para seus pais?’ Tenta aproveitar tudo isso”, lembra Lauricea, sobre os diálogos e conselhos que dava. E a oportunidade, que parece ter sido agarrada com unhas e dentes, tornou Airam um exemplo para os demais jovens. “Além de tocar zabumba, prato e tarol, eu faço capoeira”, diz ele, sobre a outra atividade que também desenvolve no projeto. “O meu sonho? Ser um grande capoeirista”, finaliza o menino, seguro de que terá um belo caminho.

Airam Melo que, ao lado da irmã, serve de exemplo para os demais jovens do projeto pela dedicação e comportamento (Foto: Phillipe Xavier)
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Jornal da Paraíba

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