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COTIDIANO

'Tentei fugir de quem eu era até os 30 anos', revela homem trans

Representatividade e apoio familiar são fundamentais para garantir saúde física e mental de pessoas trans.

Publicado em 29/01/2023 às 7:06 | Atualizado em 05/02/2024 às 17:26


                                        
                                            'Tentei fugir de quem eu era até os 30 anos', revela homem trans

"Desde sempre eu entendia que não era uma mulher. O que eu não entendia era porque as pessoas não me reconheciam como homem", revela o publicitário Samuel Barreto, homem trans que passou recentemente pela mastectomia masculinizadora, assim como pelo processo de mudança de nome e gênero, após toda uma vida em que não conseguia se reconhecer no seu próprio corpo.

Neste domingo (29), Dia Nacional da Visibilidade Trans, Samuel comemora a nova fase da sua vida: "tentei fugir de quem eu era até os 30 anos de idade. Achava até que tava louco. Aí caiu a ficha: é isso. Eu não sou louco. Sou trans", diz.

Embora não seja uma doença, uma sociedade doente de preconceitos pode, muitas vezes, levar o ser humano a colocar em dúvida seus próprios sentimentos, gerando desconfortos não só psicológicos, mas até mesmo físicos.

Além das crises de ansiedade causadas pelo tormento de viver em um corpo que lhe aprisionava, Samuel também chegou a ter problemas de saúde decorrentes da não identificação com o gênero que lhe foi imposto ao nascer. O uso do binder - uma peça de vestuário que permite a prática da amarração dos seios, com o objetivo de achatá-los utilizando materiais constritivos - também levou ele à perda da capacidade respiratória.

"Depois de um ano, um ano e meio usando o binder, comecei a sentir dificuldade em respirar, porque ele fica ali apertando o dia todo o pulmão. Fui ao médico e nos exames mostrou que minha capacidade respiratória já estava dimunuída", conta.

Segundo ele, os primeiros sinais de que seria um homem trans vieram ainda na infância, com as primeiras paixões na escola. "Eu sempre me apaixonava por meninas. E foi aí que comecei a me entender primeiro como uma mulher lésbica e, depois, como trans", explica.

O psicólogo Ricardo Alecsander, especialista no atendimento de pessoas trans, destaca que não é a transexualidade em si que causa o sofrimento, mas a expectativa de vivenciar a própria identidade, muitas vezes marcada por episódios de violência e preconceito. "A partir do momento, na maioria das vezes, que essas pessoas se reconhecem e decidem viver socialmente seu gênero elas têm suas relações prejudicadas. Sofrem transfobia no próprio seio familiar, assim como na escola e no trabalho. Tudo isso causa crises de ansiedade e de pânico", explica.

Segundo ele, a psicoterapia auxilia no processo de autoaceitação e superação da própria transfobia internalizada. "Ela oferece suporte para essa travessia social tanto a nível pessoal como também com possíveis atendimentos para os familiares próximos e amigos através de uma psicoeducação sobre a identidade", elucida.


				
					'Tentei fugir de quem eu era até os 30 anos', revela homem trans
Samuel com a companheira e cunhada. Foto: arquivo pessoal.. Samuel com a companheira e cunhada. Foto: arquivo pessoal.

Suporte da família e representatividade são fundamentais

"Tinha medo de falar para as outras pessoas e ser taxado como louco", diz Samuel. De acordo com ele, somente em 2017 ele conseguiu entender de fato o que estava acontecendo. "No auge do meu desespero de entender isso que acontecia dentro de mim, comecei a pesquisar na internet e achei algumas pessoas trans. Aí caiu a ficha. É isso. Eu não sou louco. Eu sou trans", lembra.

Esse, porém, foi apenas o início da sua jornada, que encontrou preconceitos até mesmo em profissionais de saúde a quem buscou apoio. "Muitos profissionais de saúde ainda falam da questão da cura gay", pontua, ressaltando também a importância de se dar visibilidade também a homens trans e não apenas mulheres trans, para que eles possam se reconhecer enquanto pessoas de direitos. Assim, a representatividade aliada ao suporte dado por famílias e amigos muitas vezes podem salvar vidas.

Para Samuel, a data em que ele contou a sua mãe ficou marcada: dia 21 de setembro de 2017, dois dias antes do seu aniversário de 31 anos, quando tomou sua primeira dose de hormônio. "Tomei a primeira dose e de lá, fui direto para casa da minha mãe. Primeiro ela teve um choque. Disse 'minha filha morreu'. E eu falei: 'só não é filha, agora é filho. E ele tá feliz com a decisão de finalmente assumir para o mundo quem é'", conta.

Já para o seu pai, a revelação veio por acaso, na primeira reunião que teve no Complexo Clementino Fraga para o processo de transexualização.

"Para ele foi muito tranquilo, o que até me deixou surpreso. Ele só ouviu e disse: 'e como agora eu devo lhe chamar?'".

Hoje, Samuel conta com o apoio do seu núcleo familiar e atua como gerente operacional de promoção da cidadania LGBT pelo Governo do Estado da Paraíba, lutando para que mais pessoas tenham acesso ao que é garantido desde 1988 na Constituição para todos: acesso à saúde, educação e lazer, como para qualquer cidadão.

Corpos de pessoas trans já são por si só uma bandeira

O presidente da associação Iguais LGBT, Dhell Félix, destaca que essa é uma luta que, embora seja marcada recentemente por avanços, nunca irá acabar.

"A transexual é um ser de luta, é um ser político. Ela não precisa segurar nenhuma bandeira, porque o corpo dela já é uma bandeira. E todos os dias, apenas por existir, ela já vai para a luta", diz.

Dhell Félix ressalta ainda a importância de oportunidades justas de trabalho, assim como de acesso à educação. "Hoje nós sabemos onde estão as advogadas travestis, as professoras travestis, as educadoras travestis. Isso por que? Porque contamos nos dedos. E isso acontece porque muitas delas não estudaram, foram expulsas de casa, barradas na escola, e acabam em empregos que ficam invibilizados, como através de uma linha telefônica no telemarketing. Quanto mais homens e mulheres trans tenham acesso a oportunidades mais vai haver a representatividade e aí vamos falar de um ciclo diferente: de pessoas que se reconhecem como trans e assim se blindam de preconceitos", diz.

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Rafaela Gambarra

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