CULTURA
O porta-voz do fascismo
Personagem popular nas redes sociais, o 'idiota da mídia' vira personagem do livro 'Reprodução' do escritor Bernardo Carvalho.
Publicado em 20/04/2014 às 6:00 | Atualizado em 23/01/2024 às 11:55
Mulher de pouca roupa merece ser estuprada. Bons mesmo foram os tempos da Ditadura no Brasil. Se você já ouviu alguma destas duas frases recentemente, teve a oportunidade cada vez menos rara de conhecer o 'idiota da mídia'. Espécime inoculada por um vírus perigoso, que paira sobre a atmosfera aparentemente pacífica de uma fila de banco ou de uma rede social, o 'idiota da mídia' perturbou tanto a literatura de Bernardo Carvalho que virou personagem de seu mais recente livro, Reprodução (Cia. das Letras, 168 páginas, R$ 37,00).
"A figura do que você chama de 'idiota da mídia' já me assombrava há tempos", admite em entrevista ao JORNAL DA PARAÍBA. "E eu comecei a ver nessa figura o porta-voz de um tempo em que os discursos, pelo excesso de visibilidade, também deixam de fazer sentido. Se você diz tudo, é inevitável que esse discurso seja contraditório, ele se autoanula. E é o discurso ideal para um tempo em que a palavra passa a ser desautorizada pelos atos, em que democracia quer dizer o contrário de democracia, em que você diz o bem para fazer o mal."
Como narra nas primeiras linhas do romance, tudo começa quando o 'estudante de chinês' decide aprender chinês, 'a língua do futuro'. "Como o idiota, eu também tinha estudado chinês por alguns anos e fazia tempo que queria escrever uma história sobre uma professora de chinês", conta o escritor carioca, que esboçou a primeira versão da história enquanto estava na Alemanha, em 2012, durante o período de vigência de uma bolsa de residência literária.
"Com o trabalho de corte e edição, tomei gosto pelo texto. Eu já estava insatisfeito com o que tinha escrito em Berlim. E aí foi um processo natural. Entrei naquela maneira obsessiva de narrar (o diálogo sem interlocutor) e não consegui sair até terminar o livro."
O autor foi estimulado pelo ritmo verborrágico da fala do protagonista, retido em uma sala de depoimentos quando está prestes a sair do país. Investigado pela Polícia Federal, o 'estudante de chinês' desfila um rosário de preconceitos fazendo o sinal de aspas com a mão e se escoltando em sua condição de brasileiro miscigenado para justificá-las.
"Havia uma intenção deliberadamente política ao criar o discurso desse personagem", revela. "Ele é um monstro, mas não apenas e não simplesmente. Ele também diz coisas com as quais uma hora ou outra você se identifica ou concorda. E isso é desestabilizador. É esse, para mim, o modo do discurso do novo fascismo: você concorda com uma coisa, que é a reiteração do mesmo, de um lugar-comum ou de um consenso, e de repente também está concordando com o horror, como se fosse um lugar-comum ou um consenso."
CONSENSO
Palavra que retorna ao vocabulário de Bernardo Carvalho quando ele se põe a falar da leitura que a crítica fez deste que é o seu 11º livro, escrito duas décadas depois de sua estreia com a coletânea de contos Aberração (1993). " É engraçado. Tem gente que diz que é um livro difícil. E tem gente que diz que é facílimo, que se lê de uma tacada.
Talvez seja dos meus livros o que produziu menos consenso", opina o ficcionista que está enveredando pela dramaturgia: acaba de escrever uma peça que vai estrear no próximo mês, na Bélgica, e no argumento de dois longa-metragens. Há ainda o projeto de um romance sendo engendrado mas, segundo ele, a ideia só será desenvolvida no segundo semestre, quando viaja para passar dois meses em Bruxelas.
Depois de títulos como O Sol Se Põe em São Paulo (2007), que tem como cenários o Japão e o bairro paulista da Liberdade, e Mongólia (2003), sobre um fotógrafo desparecido nas montanhas da Ásia Central, o escritor confessa que ainda não concebe o porquê de o Oriente ter uma presença tão marcante em suas obras: "Não sei. Estive na Índia recentemente, pela primeira vez, e não vi nada lá que me fizesse pensar num mundo mais espiritual, como reza a fantasia do Ocidente sobre o Oriente.
Então, talvez haja uma intenção desmistificadora da minha parte, mas seria um pouco presunçoso dizer isso. Adoro viajar pela Ásia e pelo Oriente Médio, é o lugar do 'outro', o lugar que desestabiliza suas certezas etc."
Remetendo-se a Mongólia, livro que, por um lado, lhe deu o Jabuti e, por outro, foi acusado de "não poder ser considerado literatura brasileira", Bernardo encerra a entrevista criticando um ranço que julga provinciano: "Estabelecer o que é 'brasileiro' ou não, na literatura brasileira, é uma ação redutora, subjetiva e ideológica, que esconde intenções estéticas e mercadológicas.
A grandeza da literatura está na liberdade de criar o inesperado, de alargar o mundo e os conceitos que dão sentido ao mundo. A literatura brasileira não tem que corresponder ao que as pessoas esperam que a literatura brasileira seja, a priori. A menos que tenha se resignado a ser reduzida a preconceito."
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